sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Uma mulher especial (crónica publicada no Novo Jornal)

                                                                     Marie na Praça Tahir, no Egipto

Não era uma mulher qualquer, nem uma jornalista comum. Era “uma guerreira de outra época”, como a ela se referiu o diário espanhol «El País».
Foi pelo sentimento de urgência em informar - no mais recôndito dos lugares, no mais perigoso dos conflitos - que Marie (Catherine) Colvin rejeitou ser jornalista embedded (encaixada ou integrada e que, por isso, se submete a uma série de regras) no Iraque e foi a primeira repórter ocidental unembedded (desprotegida) a visitar Bassorá.
Um tiro de um sniper, no Sri Lanka, em 2001, quando cobria o conflito entre o governo e o movimento independentista Tamil, que a fez perder um olho, não a amedrontou. Seguiu em frente, porque era preciso “manter a calma e continuar a cobrir a guerra” para que ninguém tivesse a desculpa de dizer “eu não sabia”, como lembrou Bill Neely, editor da televisão ITV, que regressou da Síria dias antes de Marie ser atingida em Homs, principal ponto da resistência ao regime de Bashar Al-Assad. Juntamente com o fotógrafo francês Remi Ochlik, de 28 anos, Marie tentava fugir das bombas que caíam sobre a casa que servia de refúgio aos jornalistas estrangeiros quando foi atingida por um foguete. Desta vez, não resistiu aos ferimentos. A correspondente do semanário britânico «Sunday Times» sucumbiu, aos 55 anos de idade, e com ela uma força e forma invulgares de estar no jornalismo. De ser jornalista.
A sua voz ressoa nos directos que fez um dia antes para a BBC, a CNN, o ITN News e o Channel 4. À BBC, Marie Calvin comparou os ataques do regime sírio a Homs com o massacre sérvio de Srebrenica, na Bósnia, em 2005. O mundo disse então que “nunca mais seria possível”, lembrou. Mas foi.
Para Marie foi o último combate de um trajecto profissional premiado, a consequência natural do seu percurso. Em 2000 foi considerada «Jornalista do Ano» pelo Foreign Press Association e recebeu o prémio «Coragem no jornalismo», atribuído pela International Women’s Media Foundation pela forma como cobriu a guerra no Kosovo e na Chechénia. Em 2001, o British Press Awards distinguiu-a com o «Foreign Reporter of the Year. Prémio que bisou em 2010.
Marie Calvin, que nasceu em 1956 em Oyster Bay, no estado de Nova Iorque, EUA, pertencia a uma casta rara de jornalistas que levam ao extremo a missão de informar. Não apenas quando a juventude impele ao risco e à aventura (o que move muitos dos correspondentes de guerra circunstanciais), mas sempre.
Os colegas de profissão – e que fazem parte dos enviados especiais, “um tipo de jornalismo em vias de extinção”, como nota o «El País» - recordam-se dela em Beirute e em Jerusalém; na Chechénia e no Kosovo; na Serra Leoa, no Zimbabué e na Líbia (em 1986, foi a primeira jornalista a entrevistar Muammar Kadhafi após a operação de bombardeamento norte-americano El Canyon Dourado). Recentemente, esteve na Praça Tahir, onde foi fotografada com a pala no olho esquerdo, que se tornou uma das suas marcas pessoais, e a ida para a Síria foi uma sequência normal da sua inquietação como repórter e correspondente de guerra, categoria sobre a qual escreveu, em 2010, numa homenagem a jornalistas mortos em conflito.
“Cobrir uma guerra significa ir a locais destroçados pelo caos, destruição e morte, e tentar dar testemunho”, afirmou, salientando: “Apesar de todos os vídeos do Ministério da Defesa e da linguagem sanitária que descreve bombas inteligentes e ataques certeiros, o cenário mantém-se igual há centenas de anos. Crateras. Casas queimadas. Corpos mutilados. Mulheres que choram os filhos e os maridos”.
A missão dos repórteres de guerra é, como escreveu, “relatar esse horror com rigor e sem preconceitos”. Como ela o fez, colando-se ao tipo de jornalismo que deu nome à BBC e que o tornou uma das escolas do jornalismo moderno, muito distante desse outro modelo tablóide do «News of the World» e do «The Sun», do império Murdoch, que fez cair a pique a credibilidade do jornalismo britânico.
Marie Colvin só não seguiu à risca uma das suas advertências. “Temos sempre de nos interrogar sobre o nível de risco de cada história. O que é coragem e o que é fanfarrice”. Ou talvez tenha, mas este conselho não é compaginável com o ímpeto destemido de quem quer informar em cenários de extrema perigosidade.
Marie não foi a primeira jornalista a morrer na Síria. Juntamente com ela morreu Remi Ochlik; há uma semana, Anthony Shadid, do «New York Times» não sobreviveu a um ataque de asma; e há um mês o jornalista francês Gilles Jacquier foi atingido por um morteiro. Mas o seu percurso merece uma atenção especial.

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