terça-feira, 29 de maio de 2012

A cotação do Presidente (crónica publicada no Novo Jornal)

Um quadro de Jacob Zuma com os órgãos genitais à mostra, que integra uma exposição inaugurada em Joanesburgo, no dia 10 de Maio, está a criar alvoroço na África do Sul, com o Congresso Nacional Africano (ANC) à proa dos protestos. O pintor sul-africano Brett Murray inspirou-se num poster do russo Viktor Ivanov, datado de 1969, que faz parte da iconografia soviética, para reencarnar a figura de Lenine com a representação do Presidente da África do Sul.

Só que, ao contrário de Lenine, Jacob Zuma surge no quadro «The Spear» (em português «A lança»), com os órgãos genitais à mostra.
O quadro exposto na Goodman Gallery fez subir a temperatura de muitos visitantes e, no domingo, dia 20, um professor universitário e um jovem não identificado irromperam pela galeria, munidos de uma trincha e duas latas de tinta, e cobriram a nudez de Zuma com tinta vermelha.
Para agravar a indignação dos que se sentiram incomodados com a obra do artista, o quadro «A lança» está exposto em frente a uma escultura de dois macacos em pleno acto sexual, aumentando as conotações sexuais da pintura.
Brett Murray diz ter sido inspirado pela imagética populista que caracterizou a propaganda do regime soviético para retratar, com metáforas subversivas, os excessos e o poder discricionário da elite dominante no país. Mas admite que a poligamia, assumida, do Presidente Jacob Zuma está presente no retrato.
Não é preciso um grande esforço para sustentar com factos esta fonte de inspiração do pintor sul-africano. O Presidente Zuma casou seis vezes - quatro das suas esposas vivem em coabitação consigo à custa do Orçamento Estado - tem 22 filhos e, em 2005, foi acusado de estupro pela filha de um militante do ANC, partido que lidera hoje a ofensiva contra o quadro de Murray.
O Congresso Nacional Africano não perdeu tempo e intentou uma acção em tribunal para a retirada e destruição imediata da pintura da galeria e a sua remoção do website do jornal «City Press».
Mas se há quem se indigne com os genitais à mostra de Jacob Zuma, também há quem tenha apreciado esta obra de arte.
O cartoonista sul-africano Jonathan Shapiro, a contas com a justiça por ter caricaturado a vida amorosa de Zuma, em 2008, fez uma recriação do quadro de Murray. Só que no lugar dos genitais, o cartoonista, que assina as suas obras com o nome Zapiro, desenhou um chuveiro, de onde saem quadro palavras: “Sex scandals, Corruption, Nepotism, Cronyism”.
Por baixo da assinatura, Zapiro escreve ainda “With apology to Brett Murray. No apology to President Zuma. Want Respect?... Earn it!” (“Com pedido de desculpas a Brett Murray. Nenhum pedido de desculpas ao Presidente Zuma. Quer respeito?... Ganhe-o!”)
Um colectivo de três juízes do Tribunal Superior de Southern Gauteng tinha, quinta-feira, nas suas mãos a tarefa de decidir o que fazer ao quadro de Murray.
Dias antes centenas de militantes e dirigentes do Congresso Nacional Africano, o partido de Zuma, concentraram-se frente ao tribunal para protestar contra o quadro por considerarem que ele é “ofensivo e atentatório da dignidade e privacidade do Presidente”.
O secretário-geral do ANC, Gwede Mantashe, foi mais longe. Afirmou que «A lança» reflecte o racismo ainda prevalecente na sociedade sul-africana, que “trata os africanos como gente sem princípios, nem sentimentos”.
Esquece-se, contudo, de dizer que Murray destacou­-se nas décadas de 1980 e 1990 por um profundo activismo anti-apartheid. E que o pintor assinou várias obras a condenar o regime minoritário branco e o seu carácter repressivo relativamente às artes e à comunicação social, o que destrói os argumentos do líder do ANC.
Em defesa do artista saiu o director executivo do Instituto das Artes Africanas, Mark van Graan, que, segundo a Agência Lusa, classificou Murray como “um herói da luta de libertação”, que pretende com este e outros quadros denunciar o fascismo branco e o fascismo negro, não perdendo de vista os principescos estilos de vida dos novos governantes e o seu desprezo pelos pobres.
Indiferentes à polémica na África do Sul, os amantes da arte já desviaram o seu olhar para sul. Segundo o jornal britânico «The Guardian», a tela teria sido vendida a um coleccionador alemão por 136 mil randes (perto de 15 mil dólares) antes mesmo de a polémica estalar.
Mas é possível que o seu valor tenha subido substancialmente porque, ao contrário da maioria dos Presidentes, a arte é duradoura e a polémica só faz aumentar a sua cotação.
Para um Presidente ter valor não basta o título; é preciso dar-lhe grandeza.

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