segunda-feira, 7 de maio de 2012

Fome (crónica publicada no Novo Jornal)

Com efeito, todas as manhãs vinham à cozinha da criadagem, em minha casa, camponeses cheios de fome que se punham a mendigar de joelhos por um pedaço de pão. E, numa das últimas noites, tinham deitado uma parede do meu celeiro e roubado de lá vinte sacas de trigo (…) A revolta alastra entre eles (…) Os famintos revoltam-se contra os que têm de comer … E estes irritam-se com os famintos… Sim… Não é este o momento para nos zangarmos, mas para sermos indulgentes. A fome é má conselheira, enlouquece os homens, torna-os ferozes, selvagens (…) Um faminto torna-se insolente e rouba; e até pode vir a fazer coisas piores… é necessário que isso se compreenda”. («A minha mulher», de Anton Tchekhov).

Mendigos às portas dos templos, acaçapados nos seus andrajos, a maior parte deles leprosos ou mutilados ou disformes, alinhados numa fila dupla como símbolos vivos da dor, em idades que vão dos sete anos até aos oitenta, de ambos os sexos, com os rostos marcados por uma expressão de tal maneira intensa que torna inútil a tradução das suas súplicas (…); mendigos quando se apanha o táxi à saída das lojas ou dos hotéis, cujos rostos não se vêem, apenas as mãos freneticamente estendidas através das janelas abertas, até nos aflorarem o rosto, cinco, dez mãos, (…) algumas pequenas, de crianças, outras minúsculas e graciosas, de mulheres jovens, outras grandes e fortes, de trabalhadores, outras engelhadas e nodosas, de velhos; mendigos dos bazares, que (…) forma um séquito que nos segue de loja em loja, enquanto um deles, mais afortunado porque mais disforme e miserável e mais digno de dó, nos precede triunfante, levando à cabeça um cesto para onde vamos atirando os pacotes e pacotinhos das nossas compras; mendigos por fome pura e simples, como aquele camponês alto, magríssimo, de rosto nobre e belo que (…) se aproximou de nós trazendo ao colo uma menina pequena toda nua e empurrando à sua frente mais três filhotes de pouca idade igualmente nus, um viúvo, evidentemente, sem casa, sem mulher, sem trabalho, talvez a morrer de fome, pelo menos a julgar pela lentidão lânguida dos passos e pela maneira como pedia, mal movendo os lábios no rosto desvairado e infeliz; em suma, mendigos por todo o lado, e muitas vezes improvisados (…) Porém, a mendicidade não é mais do que a ponta extrema da pobreza indiana. Ela não existiria se não existissem, como sabemos que existem, salários baixíssimos, desocupação crónica, ausência de assistência social, escassez de habitação e instrução deficiente.” («Uma ideia da Índia», de Alberto Moravia).


A sua tigela de sopa e agora estes 200 gramas de pão – (…) certamente o melhor prémio que poderia obter por ter prestado aquele pequeno serviço a Tsezar (…) Bem, tinha os seus 400 gramas de pão e agora estes 200 gramas suplementares, além do bocado escondido no colchão, que pesava, pelo menos, outros 200 gramas. Não era nada mau. Comeria agora 200 gramas e um naco mais tarde, e ficaria ainda, para o dia seguinte, com a ração do trabalho. Que bela vida, meu Deus! Quanto ao pedaço que se encontrava no colchão, que continuasse lá. Fora uma óptima ideia tê-lo ocultado ali! A um zek (abreviatura de prisioneiro em russo) da brigada 75 tinham-lhe surrupiado um naco de pão do armário. Era uma perda que não poderia ser remediada”. («Um dia na vida de Ivan Denisovich», de Alexander Soljenítsin).


Eram aos magotes. Alguns chegaram à porta dos supermercados às 04h00 da madrugada. Outros mais tarde. Enfrentaram longas filas, apertos, esperas de mais de oito horas. Esvaziaram prateleiras; encheram carrinhos desta e de outras superfícies comerciais tomados por empréstimo; comeram sem pagar enquanto aguardavam para chegar à caixa; rapinaram produtos, alguns; discutiram, muitos; atropelaram-se. Houve facadas. Pessoas tiveram de ser assistidas. A polícia foi chamada para pôr ordem no caos. Instalou-se um ambiente de estado de sítio, de degradação.
Este último parágrafo não foi retirado de nenhum livro. Não é um excerto da obra de um autor famoso, como os três anteriores. É uma síntese do que aconteceu no dia 1 de Maio de 2012, em todos os supermercados Pingo Doce que o grupo Jerónimo Martins tem em Portugal. A massa humana que ocorreu para beneficiar de 50 por cento de desconto em compras superiores a 100 euros tornou-se animal. Sujeitou-se a “condições humilhantes” para poupar uns tostões, desvirtuando o simbolismo de um feriado destinado a celebrar o trabalhador, abruptamente transformado em peregrinação de consumo selvagem.
Um sinal gritante do depauperamento da sociedade, que a crise vai desumanizando.

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