“Com efeito, todas as manhãs vinham à cozinha
da criadagem, em minha casa, camponeses cheios de fome que se punham a mendigar
de joelhos por um pedaço de pão. E, numa das últimas noites, tinham deitado uma
parede do meu celeiro e roubado de lá vinte sacas de trigo (…) A revolta
alastra entre eles (…) Os famintos revoltam-se contra os que têm de comer … E
estes irritam-se com os famintos… Sim… Não é este o momento para nos zangarmos,
mas para sermos indulgentes. A fome é má conselheira, enlouquece os homens,
torna-os ferozes, selvagens (…) Um faminto torna-se insolente e rouba; e até pode
vir a fazer coisas piores… é necessário que isso se compreenda”. («A minha
mulher», de Anton Tchekhov).
“Mendigos às portas dos templos, acaçapados
nos seus andrajos, a maior parte deles leprosos ou mutilados ou disformes,
alinhados numa fila dupla como símbolos vivos da dor, em idades que vão dos
sete anos até aos oitenta, de ambos os sexos, com os rostos marcados por uma
expressão de tal maneira intensa que torna inútil a tradução das suas súplicas (…);
mendigos quando se apanha o táxi à saída das lojas ou dos hotéis, cujos rostos
não se vêem, apenas as mãos freneticamente estendidas através das janelas
abertas, até nos aflorarem o rosto, cinco, dez mãos, (…) algumas pequenas, de
crianças, outras minúsculas e graciosas, de mulheres jovens, outras grandes e
fortes, de trabalhadores, outras engelhadas e nodosas, de velhos; mendigos dos
bazares, que (…) forma um séquito que nos segue de loja em loja, enquanto um
deles, mais afortunado porque mais disforme e miserável e mais digno de dó, nos
precede triunfante, levando à cabeça um cesto para onde vamos atirando os
pacotes e pacotinhos das nossas compras; mendigos por fome pura e simples, como
aquele camponês alto, magríssimo, de rosto nobre e belo que (…) se aproximou de
nós trazendo ao colo uma menina pequena toda nua e empurrando à sua frente mais
três filhotes de pouca idade igualmente nus, um viúvo, evidentemente, sem casa,
sem mulher, sem trabalho, talvez a morrer de fome, pelo menos a julgar pela
lentidão lânguida dos passos e pela maneira como pedia, mal movendo os lábios
no rosto desvairado e infeliz; em suma, mendigos por todo o lado, e muitas
vezes improvisados (…) Porém, a mendicidade não é mais do que a ponta extrema
da pobreza indiana. Ela não existiria se não existissem, como sabemos que
existem, salários baixíssimos, desocupação crónica, ausência de assistência
social, escassez de habitação e instrução deficiente.” («Uma ideia da
Índia», de Alberto Moravia).
“A sua tigela de sopa e agora estes 200
gramas de pão – (…) certamente o melhor prémio que poderia obter por ter
prestado aquele pequeno serviço a Tsezar (…) Bem, tinha os seus 400 gramas de
pão e agora estes 200 gramas suplementares, além do bocado escondido no
colchão, que pesava, pelo menos, outros 200 gramas. Não era nada mau. Comeria
agora 200 gramas e um naco mais tarde, e ficaria ainda, para o dia seguinte,
com a ração do trabalho. Que bela vida, meu Deus! Quanto ao pedaço que se
encontrava no colchão, que continuasse lá. Fora uma óptima ideia tê-lo ocultado
ali! A um zek (abreviatura de prisioneiro em russo) da brigada 75 tinham-lhe surrupiado um naco de pão do armário. Era
uma perda que não poderia ser remediada”. («Um dia na vida de Ivan
Denisovich», de Alexander Soljenítsin).
Eram aos
magotes. Alguns chegaram à porta dos supermercados às 04h00 da madrugada.
Outros mais tarde. Enfrentaram longas filas, apertos, esperas de mais de oito
horas. Esvaziaram prateleiras; encheram carrinhos desta e de outras superfícies
comerciais tomados por empréstimo; comeram sem pagar enquanto aguardavam para
chegar à caixa; rapinaram produtos, alguns; discutiram, muitos; atropelaram-se.
Houve facadas. Pessoas tiveram de ser assistidas. A polícia foi chamada para
pôr ordem no caos. Instalou-se um ambiente de estado de sítio, de degradação.
Este último
parágrafo não foi retirado de nenhum livro. Não é um excerto da obra de um
autor famoso, como os três anteriores. É uma síntese do que aconteceu no dia 1
de Maio de 2012, em todos os supermercados Pingo Doce que o grupo Jerónimo
Martins tem em Portugal. A massa humana que ocorreu para beneficiar de 50 por
cento de desconto em compras superiores a 100 euros tornou-se animal. Sujeitou-se
a “condições humilhantes” para poupar uns tostões, desvirtuando o simbolismo de
um feriado destinado a celebrar o trabalhador, abruptamente transformado em peregrinação
de consumo selvagem.
Um sinal
gritante do depauperamento da sociedade, que a crise vai desumanizando.
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