segunda-feira, 25 de março de 2013

Filmes (crónica publicada no Novo Jornal *)

Parece filme, mas não é. É uma comédia com travo amargo, que evidencia jogos de bastidores, manipulados pela prepotência e autoritarismo.
Em dois anos consecutivos, o Irão contesta os Óscares, numa ingerência cultural, com contornos políticos claros.
Se no ano passado, o Irão tentou reverter em proveito próprio a vitória de «Uma Separação», na categoria de melhor filme estrangeiro, que valeu o galardão ao realizador iraniano Asghar Farhadi, desta vez o regime de Mahmud Ahmadinejad vai mais longe e ameaça processar realizadores e produtores de Hollywood por «Argo», a película realizada por Ben Affleck, que também surge como actor, grande vencedora da cerimónia dos Óscares de 2013 ao arrebatar a categoria de Melhor Filme.
O regime iraniano não gostou da forma como o Irão é retratado na fita, que dramatiza uma missão da CIA incumbida de salvar seis diplomatas americanos, durante a chamada «crise dos reféns», em Teerão, em 1979, e vai daí encarregou a mulher de um autodenominado “revolucionário de esquerda” e mercenário condenado de instruir o processo.
Isabelle Countant-Peyre, a advogada francesa que em 2001 casou com Illich Ramirez Sánchez, mais conhecido como Carlos o «Chacal», tem nos seus ombros a tarefa de defender a honra do Irão. O marido, como se sabe, cumpre pena de prisão perpétua em França pelo assassinato de 11 pessoas na década de 1980, mas isso é de somenos importância.
Em 1975, como o mundo se recorda, Carlos levou a cabo um dos mais espectaculares actos terroristas de que há memória: sequestrou 11 ministros de países-membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) que estavam reunidos em Viena, na Áustria, acabando o golpe com a morte de três pessoas e, nas décadas de 1970 e 1980, tornou-se o homem mais procurado do mundo por todos os serviços secretos ocidentais, à imagem do que foi Osama Bin Laden na primeira década do novo milénio.
Mas também isso é pouco relevante para a advogada francesa. “Irei defender o Irão contra filmes que têm sido feitos por Hollywood para distorcer a imagem do país, como Argo”, clarificou Isabelle, durante uma conferência em Teerão. O cenário não podia ser melhor. O Cinema Palestina serviu de palco ao encontro, promovido pelo Ministério da Cultura e Orientação Islâmica do Irão, e que teve como tema o sugestivo título «O Embuste de Hollywood».
O filme «Argo», cuja exibição foi proibida no Irão, como acontece com muitos outros títulos que acabam por circular clandestinamente em dvd’s pirata, foi visto por representantes do regime, que foram claros no seu vaticínio. “O filme iranófobo americano tenta descrever os iranianos como descontrolados, irracionais, dementes e diabólicos, enquanto, por outro lado, os agentes da CIA são representados como heroicamente patriotas”.
Manipulação, um verbo estranho ao regime de Ahmadinejad que, como se sabe, é contrário às alterações da realidade. Foi, por isso, que os iranianos viram, na cerimónia dos Óscares deste ano, a primeira dama norte-americana, Michele Obama, entrar pelas suas casas adentro com um vestido de mangas e decote até ao pescoço e não o vestido de alças com que apareceu nos lares do resto do mundo.
Também fiéis à realidade, os iranianos tentaram manipular grosseiramente as imagens do funeral do Ex-Presidente da Venezuela, Hugo Chávez, realizado há uma semana. Nas cerimónias fúnebres, o presidente iraniano foi fotografado com o rosto junto ao da mãe de Chávez e de mãos dadas. Como os muçulmanos estão proibidos de tocar em mulheres que não sejam da sua família, os apoiantes de Mahmud Ahmadinejad tentaram proibir a publicação da fotografia, mas sem sucesso. A fotografia acabou por surgir nalguns sites iranianos, mas no lugar da mãe de Chávez, surge um homem, apresentado como sendo um tio do falecido chefe de Estado venezuelano.
O site conservador Entekhab, que havia criticado Ahmadinejad, chegou mesmo a pedir desculpa ao presidente iraniano e a acusar o jornal britânico «Daily Telegraph» de ser o responsável pela fotomontagem em que se via a mão de Chávez. Algumas horas depois, o site retirou o pedido de desculpa, ao constatar que o homem da foto, alegadamente parente de Chávez, era afinal Mohamad El Baradei, antigo director da Agência Internacional de Energia Atómica e actual figura da oposição egípcia, e que a sua imagem tinha sido retirada de uma fotografia onde surge a cumprimentar o presidente do Parlamento egípcio, Ali Larijani.
Como se constata, não é Hollywood que distorce a imagem do Irão. É o regime iraniano. Mas isso são filmes.

*publicada no dia 15 de Março

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