segunda-feira, 4 de março de 2013

O legado de Hessel (crónica publicada no Novo Jornal *)

Stéphane Hessel era judeu e viveu o horror do holocausto. O escritor, ensaísta e activista nasceu em Berlim, em 1917, mas cedo foi viver para França, país que lhe deu a nacionalidade. A sua origem judaica obrigou-o a abandonar o país, aquando da ocupação nazi, tendo-se juntado à Resistência liderada por De Gaulle em Inglaterra.
Preso em território francês, em 1944, Hessel foi enviado para campos de concentração nazis, conseguiu evadir-se e escapar ao destino que tiveram muitos dos seus: a morte. No fim da guerra iniciou uma longa carreira diplomática ao serviço da França, representando o país junto da ONU.
Em 2010, Stéphane Hessel, o único redator ainda vivo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, publicou um manifesto que pôs em marcha um movimento mundial, contra uma nova “guerra” que representa uma ameaça séria à Humanidade.
No manifesto, que foi traduzido para 25 línguas, Hessel alega que existem alternativas aos problemas sociais, económicos, políticos e ecológicos. Mas as soluções para a mudança só são possíveis com acção. Daí o apelo «Indignai-vos» que foi seguido por milhões de pessoas em todo o mundo e que deu origem ao movimento dos «Indignados».
Hessel morreu na terça-feira, aos 95 anos, mas deixou um legado maior do que ele próprio.
“Empenhai-vos” era um das palavras de ordem de Stéphane Hessel. O empenho, não no sentido individual, mas de defesa do bem colectivo, tem particular actualidade e esta semana teve, numa cidade de África do Sul, uma demonstração clara de como é necessário para combater as arbitrariedades.
Um taxista moçambicano morreu quinta-feira, depois de ser amarrado na parte traseira de um carro da polícia sul-africana e arrastado cerca de 400 metros numa estrada alcatroada, na sequência de uma discussão sobre estacionamento.
O homem foi encontrado morto horas depois e, de acordo com os resultados da autópsia, por causa de ferimentos na cabeça. Este acto bárbaro teria passado incólume não fosse alguém ter-se indignado e gravado o taxista a ser amarrado e arrastado. As imagens postas a circular são um testemunho do empenho defendido por Hessel.
Num planeta onde a ONU e o Banco Mundial estimam que, daqui a dois anos, existam mil milhões de pessoas a viver na pobreza extrema, causa indignação a reforma milionária do ex-homem forte do BCP.
O banco português liderado por Nuno Amado, que teve perdas de 796,3 milhões de euros nos primeiros nove anos de 2012, interpôs em 2010 um processo para reduzir a pensão do seu fundador, Jardim Gonçalves que, além de uma reforma mensal de 175 mil euros, tem direito a regalias que manteve intactas após a sua saída do banco, como transporte e segurança pessoal.
O Tribunal da Relação decidiu manter a decisão do tribunal de primeira instância, que se tinha julgado incompetente para decidir sobre o pedido do BCP. Resta agora ao banco apelar aos Tribunais do Comércio para pôr termo a um privilégio escandaloso que envergonha qualquer um, menos o pai do BCP que, do alto do seu trono, vê o filho a afundar-se.
Há formas de indignação que não têm qualquer cabimento, nem justificação.
Um restaurante de Pequim resolveu proibir a entrada de clientes de países asiáticos com conflitos com a China. “Este estabelecimento não serve japoneses, filipinos, vietnamitas e cães”, lê-se à porta do restaurante.
A indignação está a ser expressa nas redes sociais, com “cidadãos dos três países a responsabilizarem o restaurante por “ensinar o ódio às gerações mais jovens” com uma demonstração “flagrante de racismo”.
E fez reavivar polémicas antigas do período do Império Britânico, que controlava partes da China, altura em que alguns estabelecimentos especificavam que os chineses não eram bem-vindos.
Uma demonstração, não de racismo, mas de ignorância, foi a que revelou esta semana uma pivot de uma rede americana de televisão. Ao entrevistar o vencedor da meia-maratona de Nova Orleães, nos EUA, com o tempo recorde de 61 minutos, a jornalista perguntou a Mo Farah se era a primeira vez que corria.
O atleta somali, naturalizado inglês, respondeu com um sorriso. La Tonya Norton insistiu na pergunta, desconhecendo que estava perante um bicampeão olímpico, vencedor das provas de 5 mil e 10 mil metros dos Jogos Olímpicos de Londres.
À segunda, o jovem atleta, de 25 anos, respondeu delicadamente que já tinha competido noutras meias-maratonas, mas que era a primeira vez em Nova Orleães, onde venceu o etíope Gebre Gebremariam.
O bicampeão não se indignou, mas podia. A resposta de Mo Faranh é prova de uma elevação, a que a jornalista provou não estar à altura.

*Crónica publicada no dia 1 de Março de 2013

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