segunda-feira, 22 de abril de 2013

Vergonha (crónica publicada no Novo Jornal*)

No ano passado, um menino de Boston desenhou um cartaz contra a violência, num trabalho para a escola primária. No topo de uma cartolina azul escreveu “No more hurting” (basta de feridos), em letras garrafais. E, no centro, desenhou “Peace” (paz), com dois corações vermelhos, um de cada lado.
A fotografia de Martin Richard a exibir o cartaz foi publicada esta terça-feira por um repórter do Boston Globe. O sorriso que a criança imortaliza nesta fotografia desapareceu um dia antes, aos oito anos, na dupla explosão, ocorrida durante a maratona de Boston, nos EUA. Martin é uma das três vítimas mortais deste hediondo ataque. A irmã, de seis anos, e a mãe ficaram gravemente feridas. Estão ambas internadas a lutar pela vida, a irmã com uma perna amputada.
Martin não estava à espera de ver o pai cruzar a meta, como foi avançado por alguns meios de comunicação social norte-americanos. O progenitor estava ao lado da família a assistir à corrida. Esta história tem dramatismo suficiente, não precisa ser apimentada como fizeram alguns jornais. Num ápice, várias famílias ficaram mutiladas, outras tantas viram os seus membros decepados, física e psicologicamente, pela violência humana. Em nome de quê? Ainda não se sabe. Mas também pouco importa. Não há razão que chegue para roubar o sorriso… de uma criança. Nem o seu desejo de paz.
Não espanta, por isso, a revolta que se apoderou do Presidente Barack Obama quando, dois dias depois do ataque “hediondo e cobarde” de Boston, recebeu a notícia do chumbo do Senado americano à proposta que tinha sido apresentada no sentido de restringir o acesso às armas. Uma “minoria” de senadores reprovara a medida que visava alargar a verificação de antecedentes criminais dos compradores de armas.
“É um dia de vergonha para Washington”, afirmou o Presidente, numa conferência de imprensa, que contou com a presença de alguns familiares de vítimas do massacre na escola de Sandy Hook, ocorrido a 14 de Dezembro do ano passado, onde um ex-aluno matou 20 crianças e seis adultos.
Obama considera que “a memória destas crianças exige esta lei, tal como o exige o povo americano”, de acordo com as sondagens que mostram que 90% da população se declara favorável a um controlo mais apertado na venda de armas.
O Presidente e os americanos têm contra si um poderoso lobby, a National Rifle Association, e as manobras no Senado, que permitiram uma vergonhosa cambalhota. Para passar, a proposta precisava dos votos de 60 dos 100 senadores, mas a “deserção” de quatro senadores democratas, que à última hora passaram para o lado dos republicanos, não permitiu que assim fosse. Revoltada, Patricia Maisch, que sobreviveu ao tiroteio de Tuscon, no Arizona, em 2011, gritou um “tenham vergonha” que deveria fazer corar os eleitos do Senado.
Na prática, a medida proposta por Obama não ia mudar muita coisa. A verificação dos antecedentes já é feita nas lojas especializadas. Tratava-se de alargar o requisito às feiras de armamento e às vendas na internet, onde as armas são negociadas sem qualquer condição, permitindo a quem quer que seja pôr-lhes a mão.
Toda a gente sabe que quem quer matar, mata. Mas é também do senso comum que dificultar o acesso às armas é colocar um obstáculo entre o desejo e a concretização. Num país com um historial de violência civil, como o dos EUA, isto não é só uma constatação; é uma obrigação para os políticos que queiram ser dignos do estatuto. Obama não se dá por vencido. Diz que este foi apenas “o primeiro round”. É bom que esteja preparado para o próximo assalto.
Aqui é oportuno olhar para exemplos de outras latitudes e afastar do olhar o objecto que permite concretizar o crime.
Na Arábia Saudita, as autoridades religiosas resolveram expulsar três delegados da United Arab Emirates (UAE), que se encontravam num festival em Riade, porque representavam uma ameaça.
Os três homens estavam sentados nos lugares reservados aos delegados da UAE, durante o Jenadrivah Heritage & Cultural Festival, que se realizou este domingo em Riade, até que a polícia religiosa, a Mutawee, deu pela sua presença e mandou-os retirar imediatamente do local.
Expulsou-os, não porque representassem uma ameaça à integridade física da assistência, mas porque eram “demasiado atraentes” e a organização temeu que as visitantes muçulmanas se apaixonassem por eles. O que constitui, em si, um crime de lesa Pátria saudita.

*Publicada no dia 18 de Abril de 2013

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