A freira Maria Gómez Valbuena, a primeira acusada a ser chamada por um juiz, morreu há dois meses, aos 81 anos, sem que a justiça conseguisse puni-la pela sua participação no esquema de roubo de bebés, iniciado por uma norma legal de 1941, que permitia retirar o poder paternal aos pais das crianças que ingressassem em instituições assistenciais do regime franquista, passando-o ao Estado.
Apesar do envolvimento de freiras e padres no esquema, que deu elasticidade à norma legal, a igreja nunca foi responsabilizada; nunca pediu perdão pelos seus pecados, ao contrário do que sucedeu na Austrália, onde um esquema com contornos semelhantes levou o governo de Julia Gillard a pedir desculpa.
Há pouco mais de uma semana, a primeira-ministra australiana foi ao parlamento para assumir, “em nome do povo australiano”, a responsabilidade e pediu desculpas pelas “políticas e práticas que forçaram a separação de mães e bebés”, e que criou “um legado de dor e sofrimento”.
O pedido de desculpas foi a consequência lógica de uma investigação do Senado australiano, que revelou que, entre 1951 e 1975, foram realizadas mais de 150 mil adopções, desconhecendo-se ao certo o número de bebés envolvidos.
A prática foi implementada pelo Ministério da Saúde que dava, desta forma, expressão ao estigma que pesava sobre as mães solteiras, baseado na presunção de que não tinham nem recursos nem capacidade para manter os filhos.
Em Espanha, o escândalo rebentou em 2008, quando a Associação para a Recuperação da Memória Histórica apresentou no Tribunal de Instrução de Madrid informações sobre mais de 20 roubos de bebés, durante o franquismo. O governo de Espanha limitou-se a reagir quatro anos depois, em Abril de 2012, anunciando a intenção de criar um censo de crianças roubadas nos últimos 50 anos, facilitando a obtenção de dados do registo civil, como nascimentos e mortes.
Uma reacção tímida e desproporcional face ao problema que Espanha tem em mãos. Embora à data existissem apenas 1500 denúncias nos tribunais (25 por cento acabaram arquivadas por falta de provas) o juiz Baltazar Garzón admitiu, em 2008, a existência de milhares de casos. E, em Outubro de 2011, um documentário do canal britânico BBC calculava em 300 mil os bebés espanhóis roubados dos pais e vendidos para adopção, numa prática que mantinha em actividade uma rede secreta de médicos, enfermeiros, padres e freiras, altamente lucrativa.
O esquema era simples. Após o parto, retirava-se o bebé à mãe, com o argumento de que era necessário colocá-lo na incubadora e a seguir comunicava-se a sua morte. Noutro quarto, uma mulher, que dera entrada na maternidade simulando estar grávida, pagava e recebia a criança.
Tudo funcionava sobre rodas. Eram falsificadas certidões de nascimento e de óbito e um dos hospitais até tinha um bebé morto, guardado num congelador, para apresentar aos pais mais inconformados.
Os primeiros alvos desta rede, que continuou em actividade após a morte de Franco, em 1975, graças à influência da igreja que geria muitos serviços sociais, como hospitais e orfanatos, foram as combatentes republicanas que lutaram na Guerra Civil. Depois vieram os comunistas e os opositores ao regime, a quem não eram reconhecidos direitos, nem idoneidade para criar filhos.
As crianças eram entregues a casais sem filhos e cujas crenças e segurança financeira provavam à igreja que eram os pais apropriados, como constatou a jornalista Katya Adler, que assina o documentário da BBC. Algumas foram “pagas” a bom preço, como afirmou o “pai” de Moreno que, no leito da morte, confessou ter comprado o filho a um padre de Zaragosa, a troco de 200 mil pesetas, quantia que dava para comprar um apartamento, dando início ao desenrolar do novelo.
Os testes de ADN fizeram o resto. Permitiram constatar a veracidade das suspeitas e reuniram muitas famílias que a igreja e o regime de Franco separaram. Mas, para que haja uma verdadeira reconciliação, é importante que, em Espanha, a igreja reconheça o papel que teve num dos pecados da sua história. Como fez o governo da Austrália.
*Publicada no dia 29 de Março de 2013
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