terça-feira, 6 de agosto de 2013

Economês! (crónica publicada no Novo Jornal*)

Uma investigadora americana descobriu no Norte da Austrália um novo idioma. Trata-se do warlpiri rampaku ou warlpiri ligeiro, criado com base numa mistura de inglês, crioulo e warlpiri, uma das línguas aborígenes australianas com maior número de falantes.
Carmel O'Shannessy, investigadora da universidade do Michigan que estuda há mais de uma década a forma de comunicar das crianças de Lajamanu, uma localidade remota no Norte da Austrália, com 700 habitantes, é a responsável pelo achado.
Em declarações ao New York Times, a investigadora garante que o Warlpirti ligeiro tem mesmo "fortes hipóteses" de se impor ao warlpiri, uma vez que crianças e jovens de Lajamanu fizeram deste seu idioma uma marca da sua identidade.
O surgimento deste novo idioma é uma novidade, mas a capacidade de uma nova língua se impor é um facto sobejamente conhecido, como comprova o economês, dialecto que começou a ganhar força no final do século passado e que já se generalizou no actual milénio.
Graças ao economês, já não há “recessão”, mas “crescimento negativo”, já ninguém “baixa ordenados”, efectua uma “desvalorização competitiva dos salários” e os “cortes orçamentais” pertencem às calendas gregas porque hoje só há “reformas” e “ajustamentos”.
As capacidades desta nova língua, que faz furor entre políticos, economistas e jornalistas económicos, são ilimitadas. A “crise” deu lugar à “desaceleração severa”, o “aumento de impostos” foi substituído pela “majoração temporária da solidariedade” e os despedimentos foram trocados pela “racionalização da rede de colaboradores”.
Mas não se pense que as virtualidades do novo idioma se ficam por aqui. Ela é, em si mesma, uma fonte de incomunicação, o que para a classe política se revela de grande utilidade, como se pode constatar por este exemplo que nos é dado pelo economista e ex-ministro das Finanças português, Bagão Félix.
“A desalavancagem é necessária para evitar novas imparidades. A janela de oportunidade para criar valor é a de um novo paradigma impactante para os bens transaccionáveis. Já no sector público, há que agilizar os incumbentes mais resilientes de modo a aumentar o respectivo EBIDTA e a valorizar o goodwill. Quanto à divida soberana, os Eurobonds permitiriam descontar o efeito paramétrico de certas variáveis endógenas, prevenindo um haircut ou outro evento de crédito e assegurando o valor facial dos colaterais".
Bagão Félix demonstra com esta rábula como é possível, “adicionando meia-dúzia de expressões em inglês e de siglas incompreensíveis” atingir o “zénite da perfeita comunicação” para ninguém compreender.
Do outro lado do Atlântico, já em 2000, o economista Paulo Sandroni publicou um livro onde tenta desmontar a artificialidade de uma linguagem que se tornou num paradigma da manipulação.
Num registo bem humorado, Sandroni conta um episódio com a gata da vizinha que, volta e meia, se esgueira para o seu apartamento. Numa das vezes, Sandoni tropeça no filho da vizinha, adolescente dos 15 ou 16 anos, em frente ao seu aparelho de televisão a ouvir as últimas sobre os bombardeamentos e a marcha dos refugiados no Kosovo.
Impressionado, o filho da vizinha pergunta o porquê da guerra no Kosovo. Em pânico, Paulo Sandroni dá a desculpa que vai lavar as mãos e esgueira-se à espera que a atenção do adolescente volte para o gato desaparecido.
“Ao voltar para a sala, o noticiário já havia se deslocado da guerra na Jugoslávia para os últimos acontecimentos económicos e financeiros no Brasil. Um entrevistado tentava explicar o que acontecera nos tumultuosos dias de Janeiro de 1999, quando a moeda brasileira fora fortemente desvalorizada. Ao referir-se ao ex-presidente do Banco Central, Francisco Lopes, o entrevistado explicou que a flutuação da taxa de câmbio seria determinada por uma banda diagonal endógena”. Paulo Sandroni recorda que foi assaltado por uma sensação de desespero ao pensar numa nova pergunta do filho da vizinha: “Como consolo, lembrei-me de um amigo que dizia ser necessário falar o javanês para entender as portarias do Banco Central".
Sandroni esquece-se de sublinhar que o recurso ao economês tem um propósito claro: manipular a verdade. Evidente é que, no fim, as pessoas se apercebem que os despedimentos continuam a existir, a crise está aí por todo o lado e o Estado vai cada vez mais aos bolsos dos cidadãos.

*Publicada no dia 19 de Julho de 2013

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