terça-feira, 9 de setembro de 2014

Cem anos de maldição (crónica publicada no Novo Jornal*)

Documentário do GNT sobre Noiva do Cordeiro

No Brasil, há uma aldeia que rivaliza, em tempo e solidão, com a saga dos Buendia de Macondo. Mas a saga da família Fernandes, encravada no município de Belo Vale, a 100 quilómetros de Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, não foi transposta em livro, nem teve o fim de “pó e escombros” da Macondo de Gabriel García Márquez.
Noiva de Cordeiro rompeu a solidão imposta por um século de discriminação e conseguiu, graças ao inconformismo das suas mulheres, quebrar um ciclo de maldição.
A saga de Noiva de Cordeiro começa por volta de 1890. Maria Senhorinha de Lima, que vivia um casamento infeliz e sem filhos, imposto pelo pai, apaixona-se por Chico Fernandes e inicia um namoro clandestino. A jovem engravida e abandona o casamento, “uma decisão corajosa para a época”, como revela um documentário de Alfredo Alves, produzido pelo canal GNT.
Com um filho nos braços, o casal adúltero constrói um casarão a 20 quilómetros de Belo Vale, onde nascem mais oito crianças. Maria Matuzinha é a última dos nove rebentos. Ainda viva, coube-lhe a tarefa de contar à reportagem como a família foi desprezada e pagou caro pelo escândalo.
Numa região devota e dominada por homens, Senhorinha passa a ser chamada de “prostituta e pecadora”. Os epítetos passam para as filhas, netas, bisnetas e tetranetas, desde que o padre de Belo Vale excomunga o casal e lança uma maldição sobre a família e as quatro gerações seguintes.
Os parentes fecham-lhes a porta. Na cidade vizinha ninguém fala com eles. Na escola, as crianças são separadas dos outros miúdos e nos serviços de saúde os cuidados médicos são-lhes recusados.
O ostracismo levou gerações contínuas a abandonar a escola. Cláudia Vieira Fernandes, hoje na casa dos 30 anos, foi a única que resistiu. Queria ser veterinária. Mas quando concluiu a oitava casse, a prefeitura de Belo Vale tirou-lhe o transporte.
“O prefeito avisou as outras comunidades que onde havia 16 alunos ele colocava uma combi (carrinha). Eu levei 17. Lembro que juntei os meninos todos. Eu não cheguei com números, cheguei com pessoas e falei: tem 17 alunos, por favor, coloca a condução para a gente. Aí, eles falaram que para Noiva de Cordeiro, nem com 30”, recorda Cláudia. Passado tanto tempo, a jovem ainda se emociona. As lágrimas correm durante o relato. “Foi muito duro, você despedaça o sonho de uma criança por coisas que não existem”.
Cláudia acabou por desistir. Resolveu ir morar “de favor” para a Piedade dos Gerais e lá fez os estudos. Hoje dá aulas em Noiva de Cordeiro e alfabetiza os adultos. Todos têm lugar na sua escola.
A difamação e discriminação piorou em 1940, por causa de outro casamento. O pastor Anísio começou a frequentar a região, conheceu Delina e apaixonou-se. Ela tinha 16 anos, quando se casaram; ele 43.
Após desentender-se com a Igreja Baptista, Anísio funda a «Igreja Evangélica de Noiva do Cordeiro», que viria a dar nome à aldeia. “Era uma igreja muito severa. A gente não podia nada. Era isolado do mundo”, recorda Doraci. Os preceitos religiosos agravaram o isolamento. E as relações com os vizinhos azedaram, exacerbando os boatos.
Confinados e sujeitos a uma pobreza extrema, a vida em Noiva do Cordeiro era uma súmula de sacrifícios. O que se cultivava não dava para alimentar todas as bocas, os homens tiveram de ir para fora ganhar o pão.
As restrições impostas pelo pastor levaram ao fim da igreja, em 1990. A comunidade descobriu que era temente a Deus, mas que queria viver sem religião. Aos poucos, rompeu as amarras. Delina e outros dois membros resolveram ir pedir “recursos” a Belo Horizonte. Disseram-lhes para constituírem uma associação comunitária. Assim fizeram. Depois veio a escola de informática, a primeira no estado de Minas Gerais, que atraiu a atenção das comunidades vizinhas e da imprensa. Depois a cooperativa de artesanato e a fábrica de roupa.
Hoje, Noiva do Cordeio é um caso de sucesso. A sua vida em comunidade atrai estudiosos de todo o mundo. Os seus produtos vendem-se em todo o lado. Tornou-se um exemplo para académicos e activistas.
Esta semana, Noiva viu-se envolvida em novo equívoco, por causa de uma notícia do jornal Globo, replicada, sem confirmação, pela imprensa internacional, dando conta da existência de uma aldeia de “600 mulheres exóticas e solteiras”, que teriam criado uma campanha para atrair maridos.
Só que agora as mulheres de Noiva do Cordeiro já sabem como defender-se. Quebraram a maldição e não deixam que mais nenhuma se abata sobre elas.

*Publicada no dia 5 de Setembro de 2014

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