Documentário do GNT sobre Noiva do Cordeiro
No Brasil, há uma aldeia que rivaliza, em tempo e solidão, com
a saga dos Buendia de Macondo. Mas a saga da família Fernandes, encravada no
município de Belo Vale, a 100 quilómetros de Belo Horizonte, estado de Minas
Gerais, não foi transposta em livro, nem teve o fim de “pó e escombros” da
Macondo de Gabriel García Márquez.
A saga de Noiva de Cordeiro começa por volta de 1890. Maria
Senhorinha de Lima, que vivia um casamento infeliz e sem filhos, imposto pelo
pai, apaixona-se por Chico Fernandes e inicia um namoro clandestino. A jovem
engravida e abandona o casamento, “uma decisão corajosa para a época”, como
revela um documentário de Alfredo Alves, produzido pelo canal GNT.
Com um filho nos braços, o casal adúltero constrói um
casarão a 20 quilómetros de Belo Vale, onde nascem mais oito crianças. Maria
Matuzinha é a última dos nove rebentos. Ainda viva, coube-lhe a tarefa de
contar à reportagem como a família foi desprezada e pagou caro pelo escândalo.
Numa região devota e dominada por homens, Senhorinha passa a
ser chamada de “prostituta e pecadora”. Os epítetos passam para as filhas,
netas, bisnetas e tetranetas, desde que o padre de Belo Vale excomunga o casal
e lança uma maldição sobre a família e as quatro gerações seguintes.
Os parentes fecham-lhes a porta. Na cidade vizinha ninguém
fala com eles. Na escola, as crianças são separadas dos outros miúdos e nos
serviços de saúde os cuidados médicos são-lhes recusados.
O ostracismo levou gerações contínuas a abandonar a escola.
Cláudia Vieira Fernandes, hoje na casa dos 30 anos, foi a única que resistiu.
Queria ser veterinária. Mas quando concluiu a oitava casse, a prefeitura de
Belo Vale tirou-lhe o transporte.
“O prefeito avisou as outras comunidades que onde havia 16
alunos ele colocava uma combi (carrinha). Eu levei 17. Lembro que juntei os
meninos todos. Eu não cheguei com números, cheguei com pessoas e falei: tem 17
alunos, por favor, coloca a condução para a gente. Aí, eles falaram que para
Noiva de Cordeiro, nem com 30”, recorda Cláudia. Passado tanto tempo, a jovem
ainda se emociona. As lágrimas correm durante o relato. “Foi muito duro, você
despedaça o sonho de uma criança por coisas que não existem”.
Cláudia acabou por desistir. Resolveu ir morar “de favor”
para a Piedade dos Gerais e lá fez os estudos. Hoje dá aulas em Noiva de
Cordeiro e alfabetiza os adultos. Todos têm lugar na sua escola.
A difamação e discriminação piorou em 1940, por causa de
outro casamento. O pastor Anísio começou a frequentar a região, conheceu Delina
e apaixonou-se. Ela tinha 16 anos, quando se casaram; ele 43.
Após desentender-se com a Igreja Baptista, Anísio funda a
«Igreja Evangélica de Noiva do Cordeiro», que viria a dar nome à aldeia. “Era
uma igreja muito severa. A gente não podia nada. Era isolado do mundo”, recorda
Doraci. Os preceitos religiosos agravaram o isolamento. E as relações com os
vizinhos azedaram, exacerbando os boatos.
Confinados e sujeitos a uma pobreza extrema, a vida em Noiva
do Cordeiro era uma súmula de sacrifícios. O que se cultivava não dava para
alimentar todas as bocas, os homens tiveram de ir para fora ganhar o pão.
As restrições impostas pelo pastor levaram ao fim da igreja,
em 1990. A comunidade descobriu que era temente a Deus, mas que queria viver
sem religião. Aos poucos, rompeu as amarras. Delina e outros dois membros
resolveram ir pedir “recursos” a Belo Horizonte. Disseram-lhes para
constituírem uma associação comunitária. Assim fizeram. Depois veio a escola de
informática, a primeira no estado de Minas Gerais, que atraiu a atenção das
comunidades vizinhas e da imprensa. Depois a cooperativa de artesanato e a
fábrica de roupa.
Hoje, Noiva do Cordeio é um caso de sucesso. A sua vida em
comunidade atrai estudiosos de todo o mundo. Os seus produtos vendem-se em todo
o lado. Tornou-se um exemplo para académicos e activistas.
Esta semana, Noiva viu-se envolvida em novo equívoco, por
causa de uma notícia do jornal Globo, replicada, sem confirmação, pela imprensa
internacional, dando conta da existência de uma aldeia de “600 mulheres
exóticas e solteiras”, que teriam criado uma campanha para atrair maridos.
Só que agora as mulheres de Noiva do Cordeiro já sabem como defender-se.
Quebraram a maldição e não deixam que mais nenhuma se abata sobre elas.
*Publicada no dia 5 de Setembro de 2014
Sem comentários:
Enviar um comentário