terça-feira, 30 de setembro de 2014

O mal (crónica publicada no Novo Jornal*)

                                               A vida depois da chegada do EI a Raqqa

As imagens mostram várias mulheres num cibercafé, situado numa cave. Todas envergam um niqab (traje negro que deixa a descoberto apenas os olhos). As que se ouvem comunicam num francês perfeito, sem sotaque. Falam com familiares em França, aparentemente desorientados. Uma voz feminina tenta sossegar a mãe. Diz que está muito bem na Síria, onde se juntou ao marido, que não tem planos para regressar e aconselha a mãe a não acreditar em tudo o que vê na televisão.
As palavras desta jihadista de origem europeia são desmentidas pelas imagens da câmara oculta que uma estudante síria transporta para mostrar ao mundo como é a cidade de Raqqa, depois de ser tomada pelos jihadistas do Estado Islâmico (EI).
O vídeo, divulgado esta semana pelo canal de televisão France 2, terá sido filmado entre Fevereiro e Abril deste ano. Naquela altura, ainda não tinham surgido as imagens das decapitações de reféns pelo Estado Islâmico e que acordaram o mundo para a barbárie que está em curso.
A incerteza da mãe da jihadista francesa deve ter dado lugar à angústia. Hoje sabe que não pode acreditar na filha.
Os dois minutos e 22 segundos de imagens captados pela estudante síria, que desafiou a morte para revelar o modo de vida numa cidade controlada pelos jihadistas do EI, não necessita de palavras. E dispensa discursos.
Enquanto a jovem caminha pela rua, a câmara oculta capta homens armados por todo o lado. Várias mulheres de niqab cruzam-se no seu caminho. Uma delas leva o filho ao jardim-de-infância, como qualquer mãe em qualquer canto do mundo. Mas esta vai de metralhadora ao ombro. A arma baloiça sobre o traje negro, enquanto caminha com o filho pela mão.
A dada altura, a jovem com a câmara oculta é interpelada por um homem que passa num jipe. O homem chama, a estudante responde e caminha na sua direcção. Ele diz que ela deve saber comportar-se em público. Ela questiona porquê? O homem responde que se vê o rosto dela por baixo do niqab. Ela pede desculpa (desfaz-se em desculpas), admite que o niqab pode ser um pouco transporte, assume que está desolada, que não volta a cometer o erro. Ele insiste. Que ela deve ter atenção ao seu traje. E atira a frase “Deus ama as mulheres cobertas”, antes de retomar viagem.
Niqab, orações forçadas, proibição de ouvir música e de qualquer tipo de divertimento, são algumas das regras que vigoram nas cidades controladas pelo EI. Em todas elas estão vedadas as reuniões ou a concentração de pequenos grupos de pessoas. Quando chegam e se instalam, os jihadistas decapitam uma ou mais pessoas e penduram as suas cabeças em locais públicos para servir de lição. O bilhete de identidade faz jus à acção e ajuda a cimentar a reputação internacional.
A muitos quilómetros de distância, há grupos dissidentes da al-Qaida que aderem ao EI. Imitam os seus rituais, impõem as mesmas regras de dominação e morte, sempre em nome de Deus. O sequestro de um turista francês no domingo, na Argélia, mostra a expansão do ideário jihadista radical, enquanto uma coligação internacional tenta esmagar a cabeça da serpente.
Em todo o mundo procuram-se respostas para explicar o surgimento e crescimento deste grupo radical e equacionam-se medidas para travar a sua progressão. No meio dos discursos, uns mais inflamados que outros, não há como não concordar com o que disse o Presidente do Irão, no seu discurso na Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. Com a guerra lançada por Bush no Iraque, após os atentados do 11 de Setembro de 2001, os EUA geraram um monstro. E o espaço de manobra do actual Presidente americano, Barack Obama, no quadro das Nações Unidas, está limitado pelo eixo do mal que George W. Bush traçou uma década antes. A legitimidade que hoje Obama reclama sai prejudicada pela anterior ausência de legitimidade.
A guerra que Bush lançou não tornou o mundo mais seguro. Refinou o mal e disseminou-o. Espalhou as sementes e tornou mais difícil o combate contra o mal. Num mundo globalizado, os actos têm mais consequências que nunca. E ninguém consegue prever até onde vai a irresponsabilidade da Administração Bush.
Não basta hoje as bombas lançadas pela coligação internacional para decapitar e desmantelar uma máquina infernal de violência e morte. É preciso restituir a esperança a milhares e milhares de jovens em vários países do mundo que, sem emprego e perspectivas, embarcam no primeiro canto da sereia. Nem que, em vez de cauda, tenha uma kalashnikov. Num lugar bem visível.

*Publicada no dia 26 de Setembro de 2014

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