A vida depois da chegada do EI a Raqqa
As imagens mostram várias mulheres num cibercafé, situado
numa cave. Todas envergam um niqab (traje negro que deixa a descoberto apenas
os olhos). As que se ouvem comunicam num francês perfeito, sem sotaque. Falam
com familiares em França, aparentemente desorientados. Uma voz feminina tenta
sossegar a mãe. Diz que está muito bem na Síria, onde se juntou ao marido, que
não tem planos para regressar e aconselha a mãe a não acreditar em tudo o que
vê na televisão.
As palavras desta jihadista de origem europeia são
desmentidas pelas imagens da câmara oculta que uma estudante síria transporta
para mostrar ao mundo como é a cidade de Raqqa, depois de ser tomada pelos
jihadistas do Estado Islâmico (EI).
A incerteza da mãe da jihadista francesa deve ter dado lugar
à angústia. Hoje sabe que não pode acreditar na filha.
Os dois minutos e 22 segundos de imagens captados pela
estudante síria, que desafiou a morte para revelar o modo de vida numa cidade controlada
pelos jihadistas do EI, não necessita de palavras. E dispensa discursos.
Enquanto a jovem caminha pela rua, a câmara oculta capta
homens armados por todo o lado. Várias mulheres de niqab cruzam-se no seu
caminho. Uma delas leva o filho ao jardim-de-infância, como qualquer mãe em qualquer
canto do mundo. Mas esta vai de metralhadora ao ombro. A arma baloiça sobre o
traje negro, enquanto caminha com o filho pela mão.
A dada altura, a jovem com a câmara oculta é interpelada por
um homem que passa num jipe. O homem chama, a estudante responde e caminha na sua
direcção. Ele diz que ela deve saber comportar-se em público. Ela questiona
porquê? O homem responde que se vê o rosto dela por baixo do niqab. Ela pede
desculpa (desfaz-se em desculpas), admite que o niqab pode ser um pouco transporte,
assume que está desolada, que não volta a cometer o erro. Ele insiste. Que ela
deve ter atenção ao seu traje. E atira a frase “Deus ama as mulheres cobertas”,
antes de retomar viagem.
Niqab, orações forçadas, proibição de ouvir música e de
qualquer tipo de divertimento, são algumas das regras que vigoram nas cidades
controladas pelo EI. Em todas elas estão vedadas as reuniões ou a concentração
de pequenos grupos de pessoas. Quando chegam e se instalam, os jihadistas
decapitam uma ou mais pessoas e penduram as suas cabeças em locais públicos
para servir de lição. O bilhete de identidade faz jus à acção e ajuda a
cimentar a reputação internacional.
A muitos quilómetros de distância, há grupos dissidentes da
al-Qaida que aderem ao EI. Imitam os seus rituais, impõem as mesmas regras de
dominação e morte, sempre em nome de Deus. O sequestro de um turista francês no
domingo, na Argélia, mostra a expansão do ideário jihadista radical, enquanto
uma coligação internacional tenta esmagar a cabeça da serpente.
Em todo o mundo procuram-se respostas para explicar o
surgimento e crescimento deste grupo radical e equacionam-se medidas para
travar a sua progressão. No meio dos discursos, uns mais inflamados que outros,
não há como não concordar com o que disse o Presidente do Irão, no seu discurso
na Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. Com a guerra lançada por Bush no
Iraque, após os atentados do 11 de Setembro de 2001, os EUA geraram um monstro.
E o espaço de manobra do actual Presidente americano, Barack Obama, no quadro
das Nações Unidas, está limitado pelo eixo do mal que George W. Bush traçou uma
década antes. A legitimidade que hoje Obama reclama sai prejudicada pela
anterior ausência de legitimidade.
A guerra que Bush lançou não tornou o mundo mais seguro. Refinou
o mal e disseminou-o. Espalhou as sementes e tornou mais difícil o combate
contra o mal. Num mundo globalizado, os actos têm mais consequências que nunca.
E ninguém consegue prever até onde vai a irresponsabilidade da Administração
Bush.
Não basta hoje as bombas lançadas pela coligação
internacional para decapitar e desmantelar uma máquina infernal de violência e
morte. É preciso restituir a esperança a milhares e milhares de jovens em
vários países do mundo que, sem emprego e perspectivas, embarcam no primeiro
canto da sereia. Nem que, em vez de cauda, tenha uma kalashnikov. Num lugar bem
visível.
*Publicada no dia 26 de Setembro de 2014
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