segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O espectáculo da realidade (crónica publicada no Novo Jornal*)


“Uma menina, de nove anos, matou na segunda-feira um instructor de tiro por acidente, enquanto aprendia a disparar uma submetralhadora automática Uzi, no estado americano do Arizona. O acidente aconteceu quando a criança, tinha sido matriculada no curso pelos pais, perdeu o controlo da arma e puxou o gatilho, atingindo Charles Vacca, de 39 anos, na cabeça”.
Assim reza a notícia que correu mundo esta terça-feira. Nas televisões e nos jornais, a história não mereceu grande destaque. Quatro parágrafos arrumaram o assunto. Deram conta da ocorrência de forma seca, sem grandes considerações, nem especialistas a explicar o sucedido.
A notícia foi acompanhada por uma gravação dos segundos fatais, que antecederam a morte de Charles Vacca. O vídeo foi filmado pelos pais que, embevecidos com o feito da filha, quiseram registá-lo. A gravação tornada pública é interrompida precisamente no momento fatal. As imagens ficam congeladas e não deixam ver o tiro que atinge a cabeça do instructor.
A polícia não viu motivos para uma investigação e decidiu arquivar o caso. Na cultura de diversas regiões rurais americanas, é comum ensinar crianças a usar armas de fogo. No estado do Arizona, basta ter oito anos para começar a disparar. A Uzi, popular metralhadora de mão capaz de disparar até 600 projécteis por minuto, é das preferidas dos adultos. E das crianças também.
Este caso passou-se nos EUA. Se tivesse ocorrido na Palestina, no Iraque, no Afeganistão, Paquistão ou num país qualquer do continente sul-americano o acidente teria outro tratamento e diferentes repercussões. Mas isso é outra história!
Motivo para a intervenção das autoridades foi o que encontraram alguns cidadãos britânicos que esta semana se depararam com um cenário suspeito na baía de Dover Shakespeare, no sudeste de Inglaterra.
Viram um homem no mar a tentar saltar de um barco e, pensando tratar-se de um imigrante ilegal, chamaram a polícia.
Afinal, o suspeito era um atleta australiano de ultra triatlo (disciplina que combina três modalidades: natação, ciclismo e corrida), que se preparava para atravessar o canal da mancha a nado nos treinos para a prova de 450 quilómetros entre Paris e Londres.
Wan Wisse chegou de Londres a correr, após percorrer uma distância de 140 quilómetros, e preparava-se para atravessar os 33 quilómetros do canal, que separa França de Inglaterra, depois de descansar sete horas.
“Várias pessoas nos chamaram a pensar que se tratava de imigrantes ilegais porque viram pessoas a saltar de um barco”, explicou o porta-voz da polícia de Kent ao The Guardian.
A paranóia dos britânicos e os sentimentos anti-imigração que recrudescem em tempos de crise fazem ver suspeitos em todo o lado. A atenção devia, no entanto, estar virada para terra e devia concentrar-se nas causas e não nos efeitos, para evitar alucinações como as que acometeram, recentemente, o vice-presidente do Senado italiano, Roberto Calderoli, que, após insultar a ministra da Integração, Cecile Kyenge, viu a sua vida transformar-se num inferno.
Depois de comparar a ministra, que nasceu na República Democrática do Congo, a um orangotango, Calderoli foi seis vezes à sala de cirurgia, duas em terapia intensiva, uma nos cuidados intensivos, perdeu a mãe e partiu duas vértebras e dois dedos num acidente, para além de ter visto a sua casa no norte de Itália ser invadida por uma cobra com dois metros. Agora, vem pedir ao pai de Kyenge que pare o feitiço que lhe lançou!
Indiferente ao perigo, um operador de câmara americano foi abatido esta semana a tiro, durante uma perseguição policial. Bryce Dion, de 38 anos, fazia parte de uma das equipas do reality show «Cops» da cadeia americana Fox, que acompanham agentes em situações reais.
A polícia foi chamada ao restaurante Wendy’s, no centro de Omaha, no Nebraska, onde decorria um assalto à mão armada. Dois agentes seguiram para o local, juntamente, com uma equipa da Fox.
O suspeito, identificado como Cortez Washington, de 32 anos, recebeu-os com um tiro de uma pressão de ar. Na troca de tiros que se seguiu, Bryce Dion foi atingido por um polícia. Apesar de usar colete à prova de balas, o jovem não sobreviveu. A bala terá entrado pela zona da axila do braço esquerdo e atingiu o operador de câmara no peito.
Os reality shows dominam a programação das televisões em quase todo o mundo. Mas não são realidade, nem espectáculo! E querer transformar a realidade num espectáculo é, só por si, um perigo!

*Publicada no dia 29 de Agosto de 2014

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