sexta-feira, 1 de abril de 2011

A verdadeira maldição (crónica publicada no Novo Jornal)

O mistério está desfeito. A alta incidência de gémeos em Cândido Godói, no Rio Grande do Sul, Brasil, tem causas naturais e não é resultado de experiências do médico Nazi Mengele, como chegou a ser sugerido. Também não tem nada a ver com uma substância presente na água, como reza uma lenda local. É, pura e simplesmente, fruto de uma herança genética, reforçada “pelo alto nível de procriação consanguínea entre a população, composta quase inteiramente por imigrantes de língua alemã”.

Desde 1927, quando começou a colonização na região, há registo do nascimento de 141 pares de gémeos e de três casos envolvendo trigémeos. Das 141 gravidezes gemelares, 36 mulheres deram à luz em Linha de São Pedro, vilarejo com 350 moradores.
A alta incidência de gémeos em Linha de São Pedro, 10% quando a média mundial não ultrapassa 1%, gerou diversas interpretações e o mistério adensou-se, quando o jornalista argentino Jorge Camarasa, autor de uma biografia sobre Josef Mengele, sugeriu que o fenómeno poderia ter resultado de experiências realizadas pelo geneticista nazi, durante uma passagem pela região nos anos 1960.
Um grupo de cientistas do Instituto Nacional de Genética Médica Populacional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenada por Lavínia Faccine, da UFRGS, e Úrsula Matte e Patrícila Prolla, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, resolveu desvendar o mistério e, após dois anos de pesquisa, desfez as dúvidas. Deve-se à presença de um gene que aumenta a sobrevivência de embriões no útero.
Se o fenómeno de Cândido Godói suscitou espanto e curiosidade, ele não teve o mesmo impacto na vida das progenitoras e dos filhos do que aquele que transformou a vida de uma mãe queniana num inferno.
O azar de Gladyz foi ter nascido entre os bukusu, tribo maioritária naquele país africano, que ainda recorre a métodos ancestrais para “resolver” o “problema”. Há quem os estrangule à nascença e os atire ao rio, para que as águas levem o azar para longe; há quem opte por matar o segundo bebé; e há quem prefira alimentar os recém-nascidos com excrementos de animais, o que lhes provoca mortes lentas e dolorosas, como revela uma reportagem da revista portuguesa Sábado, depois de o espanhol El Mundo ter feito notícia do caso.
Gladyz Bulinya optou pelos filhos e sacrificou a sua própria vida. Esta mulher, de 35 anos, só engravida de gémeos – já vai em seis pares – e, por isso, foi renegada pela sua aldeia, Nzoia, no noroeste do Quénia, a 385 quilómetros de Nairobi.
A sina de Gladyz começa aos 16 anos. A adolescente engravida. Quando John e James nascem, o namorado assustado desaparece e a jovem mãe deixa os recém-nascidos no hospital, com medo que os matem.
Em 1998, Gladyz casa com David Chesoli e volta a engravidar. Duncan e Dennis nascem e a jovem mãe é expulsa pelos sogros. Com 21 anos, volta a casa dos pais, mas não lhe abrem a porta. Mandam-na ir viver com um vizinho, mais velho 20 anos, com quem passa a fazer vida de casada.
Em 2003, volta a engravidar. Nascem Mercy e Faith. Os pais escorraçam-na, Robert Namungu acompanha a mulher. Constroem uma barraca e mantêm-se na aldeia, onde Gladyz consegue trabalho numa escola, como cozinheira, apesar de todos a chamarem de bruxa. Ninguém lhe toca e quando o fazem, vão logo lavar-se.
Gladyz volta a engravidar de Carren e Yvy. O casal é expulso de novo, Robert mantém-se ao lado da mulher, mas acaba por abandoná-la quando, em 2007, volta a ser mãe de gémeos, Purpose e Swin. O marido vende a terra sem lhe dizer nada e parte.
Uma amiga dá-lhe abrigo numa aldeia vizinha. Robert procura-a e Gladyz volta a engravidar. O marido nem espera o nascimento das crianças, Baraka e Praise. Em Julho de 2010, dá consigo novamente sozinha com cinco pares de gémeos. Volta à terra natal, constrói uma barraca, submete-se a uma operação para laquear as trompas e passa a lavar roupa no rio para ganhar a vida.
Gladyz adoece com febre tifóide por beber água contaminada do rio, quando o seu caso é alvo da atenção de uma jornalista do «El Mundo». “Todos me abandonaram, menos Deus”, queixa-se. A reportagem é publicada e um mosteiro perto da fronteira com o Uganda acolhe-a. Pela primeira vez na vida, ela e os filhos têm uma cama.
Gladyz não estava amaldiçoada. Sofria de uma condição que leva os seus ovários e produzirem e libertarem sempre dois óvulos de cada vez.
Tal como o caso de Cândido Godói, todos os fenómenos têm explicação. Só a cabeça dos homens não. E essa é que revela ser a verdadeira maldição.

Sem comentários:

Enviar um comentário