segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Carta a Depardieu (crónica publicada no Novo Jornal)

Caro senhor, permita que me dirija a si nestes termos, mas de tanto ver os seus filmes sinto-me familiarizada consigo.
Hesitei na saudação, sabe? A sua última decisão deixou-me de boca aberta. Não a compreendi. Ainda pensei que se tratasse de golpe publicitário, marketing para um novo filme. Vasculhei, andei à procura em revistas da especialidade, mas não encontrei nada que me remetesse para uma acção cinematográfica, passada na Rússia e que o tivesse como protagonista.
O senhor inaugurou uma nova forma de protesto: Se estás zangado com o teu país nacionaliza-te cidadão de outro. Já havia o asilo político, social; as nacionalidades concedidas por serviços prestados … agora há também o… como chamá-lo… asilo fiscal.
Mas esta não é uma modalidade acessível a todos. Há que ter estatura (não é uma referência ao seu peso, não) para que o país anfitrião lhe abra os braços. Não é preciso percorrer ministérios, bater corredores nem enfrentar burocracias.  
Não tenho por si o desprezo que os russos devotam aos franceses e que Dostoiévski bem traduziu no seu livro «O Jogador», nas descrições de dois franceses “matreiros”, elementos essenciais da narrativa: o “trapaceiro” Des Grieux, e a cortesã Mlle Blanche, como o senhor bem deve saber, já que é um homem da cultura
De qualquer forma, lembro-lhe como o narrador de «O Jogador», a personagem central Aleksëi (um homem viciado no jogo), se referia ao “francesinho” Des Grieux e que é apresentado com o que a sua nacionalidade tem de característico aos olhos do escritor russo: dissimulador, amável quando tem de obter alguma vantagem, imaginação limitada.
Recordo em particular um trecho: “Ao natural o francês é do mais burguês, miúdo e quotidiano positivismo; em suma, é a criatura mais cacete do mundo”. Não estranha, por isso, que Aleksëi acabe por chegar à conclusão que “apenas novatos e mocinhas russas ficam encantados com os franceses”.
Pelos vistos era uma opinião que só vinculava Dostoiévski, ou melhor Aleksëi. Vladimir Putin, que, como Presidente, representa a nação russa, deixou-se encantar por si e acenou-lhe com a nacionalidade. Assim que o senhor – deixe-me tratá-lo simplesmente por Gerard – se queixou do governo francês por quererem aumentar-lhe os impostos, Putin veio a público dizer que lhe oferecia um passaporte russo para o Gerard usar como melhor lhe convier.
E não foi o único a condoer-se por lhe quererem apertar os calos, que é como quem diz, irem-lhe ao bolso, obrigando-o a pagar de impostos mais do que o senhor, desculpe, o Gerard, já paga.
O Grande Teatro Dramático de Tiumen, no sul da Sibéria Ocidental, vai-lhe propor, como cidadão russo que agora é, um contrato de um ano com um salário base de 16 mil rublos. Dito assim parece muito, mas fiz as contas e dá perto de 400 euros por mês. Creio que é muito menos do que tu (creio que já posso tratar-te assim) ganhas em França, mesmo com a taxa de 75 por cento com que o governo do Hollande queria taxar os ricos e que, como sabes, não passou no Tribunal Constitucional.
O interesse do Dramático de Tiumen por ti é grande. Para além do salário base de 400 euros – que é muito mais do que os 115 euros de salário mínimo que era pago em Maio de 2012 na Rússia – o teatro da Sibéria está disposto a dar-te ainda um bónus, que faz disparar o teu ordenado para os 600 euros mensais. Além disso, dá-te casa mesmo no centro da cidade.
Sei que não és homem para tomar decisões precipitadas, apesar de teres urinado para uma garrafa de cerveja num avião porque a hospedeira não te deixou ir à casa de banho em plena descolagem e de teres ignorado esta semana uma convocatória da justiça francesa por teres conduzido alcoolizado no final de Novembro. Aceitaste o passaporte, mas não abdicaste da tua nacionalidade. “Tenho passaporte russo, mas sou francês”, disseste em Zurique, na terça-feira, na cerimónia de entrega da Bola de Ouro.
Fiquei mais descansada. Deste um passo na direcção errada, mas deixaste o caminho aberto para o caso de quereres voltar para trás. Deves ter-te lembrado do que aconteceu a artistas, como tu, que se atreveram a questionar as decisões do governo russo. Criticaste o governo francês e nada te aconteceu; na Rússia foram presos ou caíram em desgraça. Olha as Pussy Riot e a Ksenia Sobtchak, a apresentadora russa que perdeu o emprego, fama e dinheiro por se atrever a levantar a voz contra Putin.
Deves também ter pensado no que Putin fez até agora pela cultura na Rússia: nada.
Não é hora para arrependimentos, Gerard, mas deixa-te de fitas. Senão arriscas-te a ser um Cyrano de Bergerac da actualidade.
Saudações,

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