A violação colectiva que levou à morte de uma estudante indiana soou o alarme de um problema que mantém a Índia submersa numa arcaica ancestralidade, mas que tem uma dimensão mundial.
Tal como na Índia, todos os dias nos cinco continentes do planeta há mulheres violadas, graças à cultura do “estava a pedi-las” que desvaloriza os crimes sexuais e perpetua as agressões contra as mulheres, como escrevi nesta coluna em Outubro, a propósito das declarações de um líder espanhol que afirmou que “as leis são como as mulheres, existem para ser violadas”.
Ora, não sendo um assunto novo – já foi vastamente escalpelizado - o que verdadeiramente importa no caso indiano são as repercussões que a violação da jovem, no dia 16 de Dezembro, num autocarro, começam a ter.
Após a violação da estudante de medicina, de 23 anos, por seis homens - incluindo o motorista e um menor de 17 anos de idade - multiplicaram-se as manifestações na Índia a exigir uma nova forma de olhar e de penalizar os crimes sexuais contra as mulheres. E os seis homens acusados da violação arriscam-se a enfrentar a pena de morte, porque não há quem os defenda em tribunal.
É precisamente neste ponto que reside a diferença.
Num país com altas taxas de violação e que culpa as vítimas nas questões relacionadas com crimes sexuais, como nota Kavita Krishnan, secretária da All India Progressive Women’ Association, é revelador do caminho que o debate público está a tomar o facto de os advogados se recusarem a defender os seis implicados, que não se limitaram a violar a estudante durante mais de uma hora. Agrediram-na com uma barra de ferro de tal forma que os médicos se viram obrigados a remover os intestinos da vítima na tentativa de lhe salvarem a vida e ainda tentaram atropelar o seu corpo vilipendiado, que atiraram para fora do autocarro.
É irónico o serviço que este acto de selvajaria acaba por prestar num país onde 228 mil dos mais de 256 mil crimes violentos registados em 2011 são contra mulheres, obrigando o governo indiano a rever a legislação e os procedimentos da polícia que ajudam a perpetuar o ciclo e a caucionar a impunidade.
Para além de se recusarem a aceitar queixas das vítimas, muitos polícias regem-se pelo lema do comandante da Polícia de Deli, cidade onde a cada 14 horas uma mulher é violada. Neeraj Kumar provocou repulsa ao afirmar que “as mulheres não devem andar por aí sem estarem acompanhadas por alguém do sexo masculino. Caso contrário, são as únicas culpadas pelo que lhes possa acontecer”.
No caso da jovem estudante, que antes de morrer pediu desculpa à mãe, a presença de um amigo não bastou. Encontravam-se em inferioridade numérica e em défice de instintos bárbaros dentro do autocarro do terror.
Este sentimento de desprezo pela condição feminina reinante na Índia, como nota Kavita Krishnan, fez com que a taxa de condenação por violação no país caísse dos 46% em 1971 para os 26% actuais. Embora esta taxa seja superior à do Reino Unido, Suécia e Estados Unidos, é preciso que se note que as queixas na Índia que chegam à barra do tribunal não representam a realidade. As 600 violações reportadas por ano na capital indiana são uma pequena gota num oceano, onde desaguam a indiferença e a impunidade. E para onde correm os estigmas que perpassam todas as sociedades e que, num mundo em desenvolvimento, coloca as mulheres em perigo iminente, como evidencia a activista política e crítica social norte-americana, Naomi Wolf, cujo mais recente livro se chama «Vagina: A nova biografia».
“A escolha pela autonomia e os riscos que acarretam a liberdade de mobilidade coloca-as em conflito com uma aplicação da lei e com uma comunicação social que ainda olham para as mulheres através de lentes pré-feministas: As “meninas bem-comportadas” que ficam em casa não devem ser violadas, enquanto as “meninas malcomportadas” que fazem valer os seus direitos nos espaços públicos são caça legal”, refere Naomi, no artigo «Acabar com a cultura da violação da Índia».
O padre Pietro Corsi em Itália desencadeou polémica ao defender, numa mensagem colocada à porta da igreja de San Terenzo no dia de Natal, que “as mulheres com a sua roupa reduzida, que se afastam da vida virtuosa e da família” podem provocar instintos criminosos.
Mas os conselhos do sacerdote em Itália, como no resto do planeta, deviam virar-se para os homens. Que se dispam de preconceitos e se vistam de Humanidade para que casos como o da Índia não continuem a manchá-los.
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