segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Direito à preguiça (crónica publicada no Novo Jornal)

- O teu irmão Galal. Dormir durante sete anos! Que artista!
- Achas que ele é artista?
- Claro. É o que eu tento explicar aos imbecis cá do bairro que vos tomam por uns mandriões.
- Mas isso é verdade. Por que razão contradizê-los?
- São uns burros, digo-te eu. Não compreendem a beleza que há nessa preguiça. Vocês são uma família extraordinária. E tu, Rafik, és o único homem inteligente que há no mundo.
Este excerto do livro «Mandriões no Vale Fértil», de Albert Cossery é um elogio à preguiça, num registo autobiográfico que não escapa a quem conhece a obra e vida do escritor egípcio.
O autor explica isso mesmo nas conversas que manteve com o realizador francês Michel Mitrani, compiladas em livro: “Mas devo agora dizer-lhe que aquele quadro, aquela casa, era a minha família. Romanceada, certamente. Não chegava a tais extremos. Mas o meu pai não trabalhava e, portanto, dormia até ao meio-dia. Os meus irmãos também não trabalhavam. Ninguém trabalhava. Apenas eu me levantava às 7 horas para ir à escola (não voltei a fazê-lo desde essa altura!), porque era o mais novo”.
Só que a preguiça de Cossery nada tem a ver com o pecado, um dos sete que a igreja católica elevou à categoria de mortal; e poucas afinidades tem com a doença diagnosticada há uma semana por dois especialistas da Universidade de Londres.
Uma doença que, segundo os médicos Richard Weiler e Emmanuel Stamatakis, está relacionada com o ciclo vicioso do comportamento sedentário: a falta de actividade física favorece a obesidade, que, por sua vez, é responsável por várias patologias, como a hipertensão e a diabetes. Devendo, por isso, ser tratada para se evitarem males maiores.
Está certo. Mas a preguiça a que se refere Cossery não se confunde com a teoria explanada pelos dois médicos. É ela própria geradora de grande actividade. Cerebral, entenda-se.
A preguiça do autor de «As cores da infâmia» é “um símbolo permanente da recusa de um certo mundo” e uma condição essencial para a reflexão. Por isso, Albert Cossery estabelece uma distinção entre a preguiça do homem que reflecte e a dos idiotas.
“Um idiota preguiçoso continua a ser um idiota! E um preguiçoso inteligente é alguém que reflectiu acerca do mundo em que vive. Não se trata, pois de preguiça. É tempo de reflexão. E quanto mais preguiçoso fores, mais tempo tens para reflectir. E é por isso que, no Oriente, isso se designa por filosofia oriental… A maior parte das pessoas tem tempo. Quanto mais se desce para sul, mais encontramos profetas, pessoas que reflectiram sobre o mundo”, afirma Cossery nas conversas com Michel Mitrani para o filme «Les Hommes-Livres» (Os homens livres, na versão portuguesa).
Mais de um século antes já Paul Lafargue fazia a defesa da rebimba, amaldiçoada pela igreja, no seu manifesto «O direito à preguiça».
O direito ao ócio era, segundo o genro de Karl Marx, a luta verdadeiramente libertária, através da qual se construiria uma sociedade mais justa, regida pelo aproveitamento do tempo livre e não pela lógica de um esforço irracional e desumano.
Nascido em Cuba, fruto da união de um francês e uma judia, Lafargue tornou-se um marxista singular no movimento socialista internacional e foi um dos fundadores do Partido Socialista francês.
O «Direito à preguiça», um clássico da literatura francesa, foi publicado em 1880, numa altura em que os trabalhadores das oficinas parisienses laboravam em média 12 ou 13 horas por dia, havendo casos em que a jornada diária se alargava até às 17 horas.
No seu livro, Lafargue é implacável na crítica a filósofos como Augusto Comte e a escritores como Victor Hugo, acusados de entoar “cantos nauseabundos em honra do deus Progresso, o filho mais velho do Trabalho”, recorda Leandro Konder, professor da Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
“Sejamos preguiçosos em tudo, excepto em amar e em beber, excepto em sermos preguiçosos”, afirmou Paul Lafargue no seu manifesto, considerado uma “sátira política magistral” e “uma obra-prima de crítica ao regime capitalista”, a precisar de reedição urgente.
Também Fernando Pessoa no início do século XX fez a apologia da preguiça, no poema «Liberdade», de Alberto Caeiro, um dos seus heterónimos: “Ai que prazer/ não cumprir um dever./ Ter um livro para ler/ e não o fazer!/ Ler é maçada,/ estudar é nada./ O sol doira sem literatura./ O rio corre bem ou mal,/ sem edição original./ E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal/ como tem tempo, não tem pressa...”
Procurando um meio-termo, despeço-me dos leitores do Paralelos por um mês e dedico-me à preguiça. De férias até meio de Setembro.

1 comentário:

  1. Preguice, preguice bem e volta com as "baterias" recarregadas.
    Bela preguiça este texto.

    ResponderEliminar