A decisão suscitou uma onda de repúdio de tal ordem que o conselho curatorial resolveu anular a edição deste ano do prémio, depois de dois dos seus membros se terem demitido. É que os protestos podiam ter repercussões tão graves que manchavam o nome da distinção ao ponto de anular os seus propósitos: o de distinguir modelos exemplares e espíritos iluminados que trabalham para o bem público e pelos direitos humanos.
Mas nem era preciso ir tão longe, aos efeitos.
Bastava olhar para a procedência e ver que atribuir um prémio desta natureza a Putin é contrariar a filosofia do próprio galardão. É anulá-lo na sua essência, obscurece-lo, como obscuro é o percurso político de Putin, um ex-KGB que transportou para a política os meandros da espionagem, transformando o cargo num vale tudo, onde não há leis nem regras para esmagar adversários, numa demonstração de desprezo pela vida humana que é antagónica com os espíritos iluminados.
Está explicada a anulação, mas fica por explicar a escolha do primeiro-ministro russo, ao lado da ministra dos Negócios Estrangeiros mexicana, Patricia Espinosa, da escritora de origem turca que vive na Alemanha, Betul Durmaz, e do primeiro-ministro palestiniano, Salam Fajad, os outros três eleitos da edição deste ano do prémio, que seria entregue a 3 de Outubro, Dia da Reunificação Alemã
A Werkstatt Deustschland, organização sem fins lucrativos com sede em Berlim, diz que escolheu Putin por ser hoje “digno de um capítulo à parte num compêndio de História”, por ter “aberto caminho para o futuro segundo a tradição de Pedro I” e ter “conseguido estabilidade, garantindo o equilíbrio da prosperidade, da economia e da identidade nacional”.
As razões elencadas são cirúrgica e oportunisticamente escolhidas, mas ocas em si mesmo. São vazias de significado perante o percurso político de Putin, como presidente que mandou eliminar adversários, jornalistas e todos os que se lhe oponham; que gere com violência as crises separatistas, como na tchétchénia – a mais sangrenta e conhecida, porque há outras – que enterrou dezenas de homens no fundo do mar, porque para ele são mais importantes os pretensos segredos militares do que as vidas humanas, nem que sejam do seu próprio povo; que garante a manutenção dos oligarcas russos, deixando à míngua a maioria da população e que continua a gerir de forma nepótica o seu país.
A anulação do prémio parece não comprometer as relações bilaterais, porque Putin é pragmático e “irá desenvolver os seus negócios mesmo com um líder político de que não gosta”, segundo palavras do seu porta-voz, Dmitri Peskov.
A viagem do Presidente russo, Dmitri Medvedev, à Alemanha, na segunda-feira, manteve-se e o porta-voz de Putin declarou que a situação não terá influência nas relações entre os dois países, nem é “motivo de tristeza”.
A imprensa russa também tentou desdramatizar o incidente, mas não deixou de expressar a sua estranheza por ninguém na Alemanha ter vindo em apoio do seu primeiro-ministro. Nem uma voz se ouviu em sua defesa. Ninguém se quis comprometer com o incomprometível, para além dos 20 membros do júri do prémio - menos os dois que se demitiram, o presidente do partido ambientalista Os Verdes, Cem Ozdemir, e o historiador Edgar Wolfrum – formado por políticos, empresários e jornalistas.
As reacções na Alemanha foram mais coléricas do que nos outros países, com excepção para os ex-laureados. O ex-presidente checo Vaclav Havel anunciou que devolveria o prémio se a atribuição a Putin se mantivesse e o artista plástico dinamarquês Olafur Eliasson devolveu o Quadriga que recebeu, também em protesto.
Sem papas na língua, nem eufemismos, a porta-voz do grupo parlamentar democrata cristão para os direitos humanos, Erika Steinbach, afirmou que o conselho “também podia ter escolhido o presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad, o líder revolucionário cubano Fidel Castro ou a direcção do partido comunista chinês”.
A reacção do porta-voz do primeiro-ministro russo à notícia da suspensão do prémio é reveladora do desdém putiniano. “Isso deve-se mais à balda reinante entre o júri de um prémio tão respeitado”, declarou Dmitri Peskov.
Mas numa coisa Peskov tem razão. “Com semelhante barulheira”, a organização não governamental alemã “apenas se prejudicou a sai própria e à sua reputação”. Irremediavelmente.
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