domingo, 16 de março de 2014

Ignorância ou má-fé (crónica publicada no Novo Jornal*)


Michelle Bachelet tomou posse esta semana como Presidente do Chile. É um regresso ao cargo que ocupou entre 2006 e 2010. Impedida pela Constituição chilena de concorrer a mandatos consecutivos, a socialista regressa ao Palácio de La Moneda, após um interregno de quatro anos, com um novo compromisso: tornar a educação pública o principal pilar da sua governação.
“Eu sei por experiência própria o que a educação pública pode dar a uma pessoa. Eu sou filha da educação pública e o meu compromisso é que no Chile todos tenhamos as mesmas oportunidades”, declarou a Presidente chilena, apontando a desigualdade como o “grande adversário” do seu país.
Bachelet - que recebeu a faixa presidencial das mãos de Isabel Allende (filha do antigo presidente Salvador Allende, deposto e assassinado em 1973), que tomou posse como presidente do Senado - não podia ter escolhido melhor bandeira para hastear.
A educação é a arma mais eficaz que as pessoas têm ao dispor para transformarem o seu destino e contrariarem o ciclo da pobreza que condena muitas famílias a uma vida de miséria. Tornar o seu acesso universal é a melhor forma de combater a desigualdade e acabar com a discriminação, nomeadamente de género.
O facto de a Presidente do Chile assumir este compromisso, ao lado de Isabel Allende – outra figura de proa do actual Estado chileno - tem um simbolismo especial, neste mês consagrado à Mulher, e mostra que com educação não há barreiras intransponíveis, a não ser aquelas que são erguidas pela ignorância, obscurantismo e fanatismo religioso.
A educação é um pilar essencial do desenvolvimento e uma premissa fundamental da liberdade, mas ainda não está acessível a todos.
A Unesco estima em cerca de 100 milhões o número de raparigas de países pobres e médios que não sabem ler, nem escrever.
Na abertura da 58ª sessão da Comissão do Estatuto Jurídico e Social da Mulher, realizada esta semana, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura alertou para o “grave desequilíbrio de géneros” de que padece a educação à escala mundial, escorando-se em dados de 2011 que indicam que só 60 por cento dos países alcançaram a paridade no ensino básico e 38 por cento no secundário.
Estas percentagens caem para uns desonrosos 20 e 10 por cento, respectivamente, no caso dos países de baixos rendimentos.
As meninas dos países árabes são as que se encontram em pior situação. Seguem-se as da Ásia meridional e ocidental e as da África Subsaariana.
A tendência actual permite acreditar que “só 70 por cento dos países terá alcançado a paridade no ensino primário, em 2015, e unicamente 56 por cento o terá conseguido no segundo ciclo do ensino secundário”, refere a organização das Nações Unidas.
Um relatório concluído entre 2013 e 2014 refere que 175 milhões de jovens de países em desenvolvimento não sabem ler. Sessenta e um por cento deste universo são mulheres, o que as relega para segundo plano.
“É simplesmente intolerável que as meninas fiquem para trás. Para as meninas pobres, a educação é uma das vias mais poderosas para um futuro melhor, que as ajudará a escapar ao círculo vicioso da pobreza”, afirma a directora-geral da Unesco, Irina Bokova, sublinhando a necessidade de consagrar a promoção da igualdade, especialmente no âmbito educativo, como objectivo fulcral da nova agenda do desenvolvimento.
Sem terem esta preocupação no centro das suas prioridades, os países estarão a consentir a discriminação de género. Cabendo ao homem o papel tradicional de sustento, as famílias pobres privilegiam o acesso à educação aos rapazes e, só em último plano, às meninas.
Este guião perdura em muitas sociedades, por incúria, mas noutras, sobretudo nos países árabes, tem o propósito firme de cercear o papel das mulheres, a quem não são reconhecidos, nos casos mais extremos, quaisquer direitos. O ataque dos talibans às escolas femininas, no Paquistão - que trouxeram Malala Yousafzai para o primeiro plano da cena internacional, após ter sido baleada, no regresso da escola – é a face mais visível deste fenómeno. Dar educação é dar poder às mulheres e os talibans querem a todo o custo impedir que ele chegue às mãos delas.
A educação pública e gratuita para todos é o principal investimento dos Estados. Não gera lucros a curto prazo, nem dividendos imediatos, mas tem um efeito duradouro e ilimitado. Não reconhece-lo é um sinal de ignorância ou então de má-fé.


*Publicada no dia 14 de Março de 2014

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