segunda-feira, 31 de março de 2014

Parece mentira (crónica publicada no Novo Jornal*)




                                               Júri da versão italiana do The Voice incrédulo ao ver a irmã Cristina Scuccia no palco

Longe dos tempos áureos que prometiam felicidade e sucesso a todos aqueles que trabalhassem arduamente e que geraram o conceito de «American Dream», os EUA são cada vez menos um país de oportunidades.
Os americanos trabalham cada vez mais e ganham cada vez menos; muitos desdobram-se em vários empregos para conseguir levar para casa o pão de cada dia, mas nem sempre garantem o acesso dos seus aos cuidados básicos de saúde.
Com as políticas das últimas décadas, os Estados Unidos atiram para as margens cada vez mais cidadãos. Hoje já poucos enriquecem graças ao seu esforço. Só enriquecem os especuladores financeiros, os fabricantes de armas, os que gerem os recursos petrolíferos, os que administram grandes grupos económicos e os que têm acesso aos lóbis; os que almoçam com quem tem acesso aos lobistas, que influenciam congressistas e os que se sentam à mesa do poder.
Dir-se-á que é assim em todo o lado!
Pois. Mas o sonho americano criou a ilusão de que toda a gente nos EUA pode ser bem-sucedida desde que trabalhe. E que todos podem atingir a felicidade e levar uma vida de sucesso.
Um sonho que se esboroou e que leva os que pretendem enriquecer a criar atalhos.
Não é de agora. São cada vez mais os processos em tribunal na mira de indemnizações chorudas que avolumam os bolsos dos queixosos e que engordam as companhias de advogados que as patrocinam.
Processa-se por tudo e por nada. Atinge-se tudo e todos. Não interessa qual o motivo, nem a sustentabilidade da queixa. O que interessa é urdir um processo que crie no corpo de jurados a dúvida razoável para condenar grandes companhias e obrigá-las a abrir os cordões à bolsa. Mas isso também não interessa para nada, desde que haja quem ganhe com isso.
Ainda não se sabe o que aconteceu ao avião que saiu de Kuala Lumpur, capital da Malásia, no dia 8 de Março, com 139 pessoas a bordo; ainda se desconhecem os motivos por trás do desaparecimento; ainda está tudo envolto em mistério, mas já surgiu uma firma de advogados a acenar com um processo contra a Boeing e a Malaysia Airlines, acusando as duas empresas por falhas técnicas que originaram o acidente.
Parece uma antecipação do 1 de Abril. Mas aquilo que parece mentira é uma verdade, sem escrúpulos, que amachuca quem sofre com a perda de um ente querido em circunstâncias trágicas. Sem pudor e respeito no luto.

Incrédulo. Assim ficou o corpo de jurados da versão italiana do concurso televisivo «The Voice». Alguns dos membros que integram o júri não evitaram as lágrimas, que afloraram também aos olhos da concorrente. Uma freira “veríssima”, como respondeu Cristina Scuccia, quando a cantora Rafaela Carra, um dos jurados, lhe perguntou se era uma freira verdadeira.
O vídeo da audição de Cristina já está no youtube. E, em três dias, bateu o recorde que pertencia ao sul coreano Psy, com o famoso Gangnam Style.
Nos bastidores do concurso, que na fase inicial submete os concorrentes a uma audição cega, com o júri de costas voltadas para o cantor (os que virarem a cadeira disputam o candidato), vêem-se quatro freiras, com os seus hábitos negros, a pular de satisfação quando o músico J-Ax se volta para a candidata. Algumas não resistem a um pé de dança, induzidas pela voz soul de Cristina, que canta «No One», de Alicia Keys. O rapper italiano solta um “oh” de espanto quando dá de caras com a freira. O público liberta um ensurdecedor aplauso no fim da actuação. E Cristina dá pulinhos de alegria, correspondendo ao coro que emerge da plateia. 
É bonito. É emocionante. É bom ver quebrar barreiras.
O hábito que enverga não tolda Cristina. Não retira o talento, nem inibe esta siciliana, de 25 anos, que salta do convento para o palco da fama mundial. “O que é que a traz ao The voice?”, indaga a cantora Rafaela Carra. “Um dom”, responde a concorrente.
“E o que lhe diz o Vaticano por se apresentar ao The Voice?”, insiste Rafaela. “Não sei, espero um telefonema do Papa Francisco, seguramente. Ele convida-nos a sair, a evangelizar, a dizer que Deus não nos tira nada, pelo contrário, nos dá ainda mais. Eu estou aqui por isso”, responde a jovem.
Cristina escolhe o primeiro membro do júri que virou a cadeira. O mesmo que se emocionou, que ficou com os olhos marejados ao olhar para ela. Juntos formam uma improvável dupla entre uma religiosa e um rapper.

Parece mentira. Mas, felizmente, é verdade. Uma verdade que derruba preconceitos e que faz nascer no seio da igreja uma nova estrela.

*Publicada no dia 28 de Março de 2014

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