A Ucrânia está dividida. Metade é pró-russa, a outra metade, a
que tomou conta da praça da independência, é pró-europeia. De um lado e de
outro, as posições radicalizam-se. A intervenção policial e militar de
terça-feira, ordenada pelo Presidente Viktor Ianukovitch, acendeu o rastilho.
Ninguém sabe ao certo quanto lastro ainda existe até ao barril de pólvora.
Ninguém consegue prever o desfecho do braço de ferro, na Praça da
Independência, tomada pelos manifestantes como símbolo da resistência à
aproximação à Rússia.
A Rússia incendeia os ânimos com um discurso incitador; a Europa
ameaça com sanções contra os executores da violência na Ucrânia; e os Estados
Unidos tomam posição no conflito, com o Presidente Barack Obama a pôr em causa
a manutenção de Ianukovitch por ter ultrapassado a linha vermelha, ao ordenar o
ataque de pessoas que querem expressar-se livremente.
No meio dos acontecimentos desta semana, precipitados por uma
intervenção militar que tentou desmobilizar com sangue manifestantes pró-Europa,
a demissão do presidente da Câmara de Kiev é vista como um prenúncio da
derrocada de Ianukovicth, apesar da desigualdade de armas, como notou à Lusa,
um imigrante ucraniano, que se juntou aos opositores do governo na Praça da
Independência.
“Ninguém sai daqui e vem mais gente para resistir ou morrer”,
afirmou Sergei Sheyndryk. Tal como ele, outros emigrantes ucranianos espalhados
pela Europa ponderam regressar ao seu país para engrossar as fileiras da
resistência e ajudar a nascer “uma Nação livre, sem comunistas, nem bandidos”.
Enquanto não chegam, novas barricadas se erguem no centro de
Kiev, com organização e estratégia militar. Apesar da desigualdade de armas, os
manifestantes não arredam pé da praça da Independência. Os mortos não abriram
fissuras na determinação em resistir, apesar de a contabilidade continuar a subir,
chegando a uma estimativa de 100 mortos no final desta quinta-feira negra.
Nas fotografias que circulam em todo o mundo, dando conta do “Inferno”
que se vive no coração da Ucrânia, imagens de mulheres a distribuir alimentos entre
os manifestantes contrastam com fotos de sangue, morte, fogo e polícia de
choque.
Independente após o colapso da União Soviética, em 1991, parte
da Ucrânia olha com desconfiança para a Rússia e reage a cada piscadela de olho
do Kremlin. A Revolução Laranja, que invadiu as ruas em 2004, resultou na
vitória do campo pró-ocidental, abrindo caminho a uma aproximação à União
Europeia e à Nato. Mas o retomar do namoro russo, que interrompeu a trajectória
de aproximação entre a Ucrânia e a União Europeia, e que em Dezembro culminou
na assinatura de um acordo entre o Governo de Ianukovicth e a Rússia, no
montante de 15 biliões de dólares em títulos do governo ucraniano, fez explodir
os protestos iniciados em Novembro de 2013.
Um negócio que se está a revelar ruinoso para a Rússia, por
causa do impacto negativo que os protestos estão a ter na economia ucraniana.
A instabilidade política dos últimos meses provocou a fuga
maciça dos investidores internacionais e atingiu o grívnia, a moeda da Ucrânia,
que quinta-feira chegou a novos mínimos, temendo-se o contágio nas moedas dos
países vizinhos, que também registaram acentuadas quebras no mercado.
O rublo russo não sai incólume e registou um mínimo face ao euro,
fazendo tremer as autoridades russas que apelaram, insistentemente, para que o
Presidente Ianukovitch reprimisse com determinação a tentativa de golpe de
estado em curso no seu país.
“Ou um presidente democraticamente eleito usa a força para
travar o golpe de Estado, ou abandona o cargo e o golpe triunfa”, afirmou à BBC
Serguei Marko, antigo deputado do partido de Vladimir Putin, surgindo em
contracorrente com os apelos ouvidos ao longo do dia para o fim da violência.
Não estranha a pressão russa. Com a Ucrânia cada vez mais em
risco de incumprimento e de entrar em default, o Kremlin, que é o principal
financiador externo de Kiev, está em risco de perder 30 mil milhões de dólares,
segundo cálculos da BBC, o que justifica, em parte, o título com que o «The
Economist» grafou a primeira página de quinta-feira: «O inferno de Putin».
*Publicada no dia 21 de Fevereiro de 2014
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