sábado, 22 de março de 2014

Uma história simples (crónica publicada no Novo Jornal*)

                                    Numa sociedade segregadora, Wadjda sonha ter uma bicicleta  

Haifaa Al-Mansour nasceu em 1971, numa pequena cidade da Arábia Saudita, onde não há cinemas. Por influência do pai, o poeta saudita Abdul Rahman Mansour, apaixonou-se pela sétima arte. Os muitos filmes em VHS que os pais traziam para casa foram abrindo buracos nos muros que a separavam do resto do mundo e fizeram nascer dentro dela o desejo de não se limitar a uma vida vazia, sem nada para fazer, fruto de uma cultura que segrega as mulheres. Foi para o Egipto, onde tirou o bacharelato em Literatura na Universidade Americana no Cairo. E, com a ajuda do irmão, começou a fazer pequenas curtas-metragens que mandou para um festival em Abu Dhabi. A organização do certame mandou-lhe um bilhete para participar no evento e Haifaa não se ficou por ali. Foi estudar para a Austrália, onde fez uma pós-graduação em Realização e Estudos Cinematográficos em Sydney. “Foi a primeira vez que senti que tinha uma voz e que as pessoas queriam ouvir o que eu tinha a dizer sobre o mundo, e percebi que queria contar histórias com os meus filmes”, revelou.
Wadjda é uma menina de 11 anos que vive nos subúrbios de Riade, capital da Arábia Saudita. Frequenta uma escola rígida, onde as raparigas usam véu e sandálias pretas. Ela recusa a submissão e calça umas velhas sapatilhas «All-Star». O seu sonho é ter uma bicicleta, desejo interdito num país onde as mulheres não podem tirar a carta de condução, nem estão autorizadas a conduzir um carro, tão pouco a andar sozinhas. Depois de uma desavença com o seu amigo Abdullah, Wadjda vê uma bicicleta verde à venda. Pede à mãe que lha compre, mas esta, temendo as repercussões de uma sociedade que vê as bicicletas como perigosas para a virtude da mulher, recusa o pedido. A pequena não desiste. Inscreve-se numa competição de leitura do Corão na escola para ganhar o dinheiro do prémio e poder comprar a bicicleta.
«O sonho de Wadja» é a primeira longa-metragem filmada integralmente na Arábia Saudita, feito mais extraordinário quando se sabe que foi dirigida por uma mulher. Haifaa Al-Mansour, que é também a primeira realizadora da Arábia Saudita – outras mulheres já seguiram as suas pisadas – quis contar uma história simples. Que não chocasse as pessoas do seu país, nem os costumes e tradições locais, mas que as tocasse ao ponto de as fazer reflectir sobre o mundo onde vivem.
“Eu não quero que elas recusem o filme completamente. Não quero ser violenta e empurrar o filme contra as pessoas. Eu quero falar com as pessoas e fazer com que elas se envolvam e me acompanhem na história (…) Conquistar as pessoas é a melhor maneira para a arte desempenhar um papel mais importante no Médio Oriente”, explicou numa entrevista ao site «C7nema», a propósito da sua participação no festival de Veneza, em Itália.
Foi também por isso que Haifaa quis regressar e filmar na Arábia Saudita, apesar dos múltiplos constrangimentos. Num país fortemente segregador, os homens e as mulheres não se podem misturar. Durante as filmagens, a realizadora teve de permanecer escondida numa carrinha. Comunicava com a sua equipa e dava instruções através de um walkie talkie. Para falar com os actores, tinha de os chamar à carrinha ou então ligar-lhes para o telemóvel. “Foi muito frustrante”, confessou. Um preço que está disposta a pagar.
Com os seus filmes, Haifaa quer ajudar a transformar a Arábia Saudita, onde a fonte de maior poder não é o presidente, nem o rei, mas a hierarquia religiosa e a “própria sociedade” que “controlam acima de tudo os costumes e as leis dos territórios”.
A realizadora sabe que só o pode fazer de dentro para dentro, daí que não tenha qualquer intenção de deixar o seu país, como acontece com muitos realizadores que saem para poderem expressar-se livremente.

Haifaa usa a subtileza como estratégia nas histórias que se centram em personagens simples e capazes de criar empatia. Foi isso que acontecer com «O Sonho de Wadjda», a menina que queria uma bicicleta, desejo tão comum em muitos países do mundo, mas vedado às que vivem na Arábia Saudita. Raparigas com “muitos sonhos, personalidade e potencial” e que “podem, e irão, remodelar e redefinir a nação saudita”, acredita Haifaa, consciente de que única forma de chegar ao coração das pessoas é com gente comum e com histórias que fazem parte da vida de todas as sociedades. E não riscando uma linha divisória que coloca, de um lado, vilões, e, do outro, as vítimas, porque sabe que todos correm o risco, num dado momento das suas vidas, de mudar de lado.

*Publicada no dia 21 de Março de 2014

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