Numa sociedade segregadora, Wadjda sonha ter uma bicicleta
Haifaa Al-Mansour nasceu em 1971, numa pequena cidade da
Arábia Saudita, onde não há cinemas. Por influência do pai, o poeta saudita
Abdul Rahman Mansour, apaixonou-se pela sétima arte. Os muitos filmes em VHS
que os pais traziam para casa foram abrindo buracos nos muros que a separavam
do resto do mundo e fizeram nascer dentro dela o desejo de não se limitar a uma
vida vazia, sem nada para fazer, fruto de uma cultura que segrega as mulheres.
Foi para o Egipto, onde tirou o bacharelato em Literatura na Universidade
Americana no Cairo. E, com a ajuda do irmão, começou a fazer pequenas
curtas-metragens que mandou para um festival em Abu Dhabi. A organização do certame
mandou-lhe um bilhete para participar no evento e Haifaa não se ficou por ali.
Foi estudar para a Austrália, onde fez uma pós-graduação em Realização e
Estudos Cinematográficos em Sydney. “Foi a primeira vez que senti que tinha uma
voz e que as pessoas queriam ouvir o que eu tinha a dizer sobre o mundo, e
percebi que queria contar histórias com os meus filmes”, revelou.
«O sonho de Wadja» é a primeira longa-metragem filmada integralmente
na Arábia Saudita, feito mais extraordinário quando se sabe que foi dirigida
por uma mulher. Haifaa Al-Mansour, que é também a primeira realizadora da
Arábia Saudita – outras mulheres já seguiram as suas pisadas – quis contar uma
história simples. Que não chocasse as pessoas do seu país, nem os costumes e
tradições locais, mas que as tocasse ao ponto de as fazer reflectir sobre o
mundo onde vivem.
“Eu não quero que elas recusem o filme completamente. Não
quero ser violenta e empurrar o filme contra as pessoas. Eu quero falar com as
pessoas e fazer com que elas se envolvam e me acompanhem na história (…)
Conquistar as pessoas é a melhor maneira para a arte desempenhar um papel mais
importante no Médio Oriente”, explicou numa entrevista ao site «C7nema», a
propósito da sua participação no festival de Veneza, em Itália.
Foi também por isso que Haifaa quis regressar e filmar na
Arábia Saudita, apesar dos múltiplos constrangimentos. Num país fortemente segregador,
os homens e as mulheres não se podem misturar. Durante as filmagens, a
realizadora teve de permanecer escondida numa carrinha. Comunicava com a sua
equipa e dava instruções através de um walkie talkie. Para falar com os
actores, tinha de os chamar à carrinha ou então ligar-lhes para o telemóvel.
“Foi muito frustrante”, confessou. Um preço que está disposta a pagar.
Com os seus filmes, Haifaa quer ajudar a transformar a
Arábia Saudita, onde a fonte de maior poder não é o presidente, nem o rei, mas a
hierarquia religiosa e a “própria sociedade” que “controlam acima de tudo os
costumes e as leis dos territórios”.
A realizadora sabe que só o pode fazer de dentro para
dentro, daí que não tenha qualquer intenção de deixar o seu país, como acontece
com muitos realizadores que saem para poderem expressar-se livremente.
Haifaa usa a subtileza como estratégia nas histórias que se
centram em personagens simples e capazes de criar empatia. Foi isso que
acontecer com «O Sonho de Wadjda», a menina que queria uma bicicleta, desejo
tão comum em muitos países do mundo, mas vedado às que vivem na Arábia Saudita.
Raparigas com “muitos sonhos, personalidade e potencial” e que “podem, e irão,
remodelar e redefinir a nação saudita”, acredita Haifaa, consciente de que
única forma de chegar ao coração das pessoas é com gente comum e com histórias
que fazem parte da vida de todas as sociedades. E não riscando uma linha
divisória que coloca, de um lado, vilões, e, do outro, as vítimas, porque sabe
que todos correm o risco, num dado momento das suas vidas, de mudar de lado.
*Publicada no dia 21 de Março de 2014
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