O verdadeiro compositor (em cima) por detrás do falso Beethoven
José Costa é um escritor-fantasma. Juntamente com um amigo
de faculdade, Álvaro Cunha, fundou a empresa Cunha & Costa Agência
Cultural. É através dela que recebe propostas de trabalho. Pela sua caneta
passam cartas, declarações, notas, artigos especializados e não especializados,
discursos e livros. Todos assinados por outros que não ele.
Costa escreve, Álvaro promove o seu trabalho e, juntos, mantêm
uma parceria bem sucedida até ao momento em que José regressa de um congresso
de autores anónimos em Istambul, na Turquia.
Uma escala imprevista retém José na capital da Hungria, a
terra que fala a “única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo
respeita”.
Em Budapeste, Costa conhece Kriska e é com ela que aprende húngaro.
Por ela se enfeitiça e com ela esbate o sentimento que o liga a Vanda, a
apresentadora de telejornais em ascensão, com quem casou e que é mãe do seu
único filho, Joaquinzinho.
A fatídica escala divide José ao meio, colocando o Rio de
Janeiro, Vanda e Joaquinzinho de um lado; Budapeste e Kriska do outro. Nesta
dualidade, nasce um novo filho – Pisti – e desponta em Zsoze Kósta (como Kriska
lhe chama) o desejo de ver o seu nome emergir naquilo que escreve.
O resto é estória. Estória contada por Chico Buarque no seu
terceiro livro – Budapeste – que o consagra junto da crítica literária.
Budapeste é, segundo o professor de literatura brasileiro
José Miguel Wisnik, um “romance do duplo, tema clássico na literatura ocidental
desde que a identidade do sujeito tornou-se problema e enigma”.
O assunto sucede-se nas “narrativas do século XIX, através
dos motivos da sombra, do sósia, da máscara, do espelho, e evolui para a
indagação desse esfinge impenetrável e desencantada que é a própria pessoa como
persona e ninguém”.
Mas, como nota também Wisnik, se o “escritor é o duplo de si
mesmo, por excelência e por definição, aquele que se inventa como outro e que
escreve, por um outro, a própria obra”, o jogo do duplo não se restringe à
criação literária. Ele estende-se às artes da representação – cinema e teatro –
com propriedade e justificação. E, como se viu há uma semana, contamina outras expressões
artísticas, onde não tem enquadramento, nem fundamentação.
Depois de 18 anos a viver à sombra de um compositor
fantasma, Mamoru Samuragochi, um dos mais apreciados compositores nipónicos
conhecido como «Beethoven japonês» por ser totalmente surdo, foi desmascarado.
A revelação, feita pelo próprio um dia antes da revista
Shukan Bunshun publicar uma notícia sobre o embuste, atingiu como um sabre a
reputação de Samuragochi, construída ao longo de duas décadas com bisturi e
precisão cirúrgica.
Segundo a biografia oficial, o Beethoven japonês, que se
apresenta sempre com óculos escuros e cabelos grandes, é filho de sobreviventes
de Hiroshima e tornou-se completamente surdo aos 35 anos. Apesar disso,
continuou a compor e, em 2011, criou a «Sinfonia nº1, Hiroshima», em homenagem
às vítimas da bomba nuclear que destruiu aquela cidade, a 6 de Agosto de 1945,
um disco que atingiu um recorde naquele segmento ao vender 147 mil cópias.
Um ano depois, um filme da televisão pública japonesa
mostrava Mamoru, numa visita à região de Tohoku, a confortar sobreviventes do
tsunami ao som da música que, após o documentário, ficou conhecida como a
sinfonia da esperança.
Apesar da revelação, onde admitiu ter contratado um
professor de música para escrever partituras em seu nome por causa da sua
deficiência auditiva, Samuragochi insistiu na mistificação e veio novamente a
público dizer que só há três anos começou a recuperar parcialmente a audição,
numa tentativa de minimizar a fraude.
Takashi Niigaki, reputado pianista e professor numa
conceituada escola de música privada de Tóquio, era o homem por trás de Mamoru,
para quem escreveu mais de 20 peças, incluindo a sinfonia de Hiroshima e as
músicas para os jogos de vídeo, a troco de 77 mil dólares. O pianista garante
que tentou revelar a farsa, mas Samuragochi demoveu-o, segundo ele, com a
ameaça de cometer suicídio.
Não impediu, no fim, o suicídio da personagem, após cair o
pano num teatro de sombras que não tinha luz, nem glória.
*Publicada no dia 14 de Fevereiro de 2014
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