segunda-feira, 3 de março de 2014

Fantasmas (crónica publicada no Novo Jornal*)



O verdadeiro compositor (em cima) por detrás do falso Beethoven


José Costa é um escritor-fantasma. Juntamente com um amigo de faculdade, Álvaro Cunha, fundou a empresa Cunha & Costa Agência Cultural. É através dela que recebe propostas de trabalho. Pela sua caneta passam cartas, declarações, notas, artigos especializados e não especializados, discursos e livros. Todos assinados por outros que não ele.
Como ghost-writer, José sabe que tem de permanecer no anonimato; é obrigado a cortar todo e qualquer vestígio do cordão umbilical que o liga aos artigos e a permanecer na não existência.
Costa escreve, Álvaro promove o seu trabalho e, juntos, mantêm uma parceria bem sucedida até ao momento em que José regressa de um congresso de autores anónimos em Istambul, na Turquia.
Uma escala imprevista retém José na capital da Hungria, a terra que fala a “única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita”.
Em Budapeste, Costa conhece Kriska e é com ela que aprende húngaro. Por ela se enfeitiça e com ela esbate o sentimento que o liga a Vanda, a apresentadora de telejornais em ascensão, com quem casou e que é mãe do seu único filho, Joaquinzinho.
A fatídica escala divide José ao meio, colocando o Rio de Janeiro, Vanda e Joaquinzinho de um lado; Budapeste e Kriska do outro. Nesta dualidade, nasce um novo filho – Pisti – e desponta em Zsoze Kósta (como Kriska lhe chama) o desejo de ver o seu nome emergir naquilo que escreve.
O resto é estória. Estória contada por Chico Buarque no seu terceiro livro – Budapeste – que o consagra junto da crítica literária.
Budapeste é, segundo o professor de literatura brasileiro José Miguel Wisnik, um “romance do duplo, tema clássico na literatura ocidental desde que a identidade do sujeito tornou-se problema e enigma”.
O assunto sucede-se nas “narrativas do século XIX, através dos motivos da sombra, do sósia, da máscara, do espelho, e evolui para a indagação desse esfinge impenetrável e desencantada que é a própria pessoa como persona e ninguém”.
Mas, como nota também Wisnik, se o “escritor é o duplo de si mesmo, por excelência e por definição, aquele que se inventa como outro e que escreve, por um outro, a própria obra”, o jogo do duplo não se restringe à criação literária. Ele estende-se às artes da representação – cinema e teatro – com propriedade e justificação. E, como se viu há uma semana, contamina outras expressões artísticas, onde não tem enquadramento, nem fundamentação.
Depois de 18 anos a viver à sombra de um compositor fantasma, Mamoru Samuragochi, um dos mais apreciados compositores nipónicos conhecido como «Beethoven japonês» por ser totalmente surdo, foi desmascarado.
A revelação, feita pelo próprio um dia antes da revista Shukan Bunshun publicar uma notícia sobre o embuste, atingiu como um sabre a reputação de Samuragochi, construída ao longo de duas décadas com bisturi e precisão cirúrgica.
Segundo a biografia oficial, o Beethoven japonês, que se apresenta sempre com óculos escuros e cabelos grandes, é filho de sobreviventes de Hiroshima e tornou-se completamente surdo aos 35 anos. Apesar disso, continuou a compor e, em 2011, criou a «Sinfonia nº1, Hiroshima», em homenagem às vítimas da bomba nuclear que destruiu aquela cidade, a 6 de Agosto de 1945, um disco que atingiu um recorde naquele segmento ao vender 147 mil cópias.
Um ano depois, um filme da televisão pública japonesa mostrava Mamoru, numa visita à região de Tohoku, a confortar sobreviventes do tsunami ao som da música que, após o documentário, ficou conhecida como a sinfonia da esperança.
Apesar da revelação, onde admitiu ter contratado um professor de música para escrever partituras em seu nome por causa da sua deficiência auditiva, Samuragochi insistiu na mistificação e veio novamente a público dizer que só há três anos começou a recuperar parcialmente a audição, numa tentativa de minimizar a fraude.
Takashi Niigaki, reputado pianista e professor numa conceituada escola de música privada de Tóquio, era o homem por trás de Mamoru, para quem escreveu mais de 20 peças, incluindo a sinfonia de Hiroshima e as músicas para os jogos de vídeo, a troco de 77 mil dólares. O pianista garante que tentou revelar a farsa, mas Samuragochi demoveu-o, segundo ele, com a ameaça de cometer suicídio.
Não impediu, no fim, o suicídio da personagem, após cair o pano num teatro de sombras que não tinha luz, nem glória.


*Publicada no dia 14 de Fevereiro de 2014

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