sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Sem palavras (crónica publicada no Novo Jornal*)



Não se distinguiram pela beleza, nem pelo porte. Charlie Chaplin e Philip Seymour Hofman foram grandes actores, figuras maiores do cinema. Atingiram patamares apenas acessíveis a muito poucos e, por isso, figuram como referências maiores da cinematografia mundial.
Chaplin com uma vasta obra, assente na linguagem universal da mimica, e uma longa vida que lhe permitiu, com a sua personagem de vagabundo, deixar um espólio incomparável. Seymour com um percurso interrompido cedo de mais, que o impediu de demonstrar novas dimensões de um talento extraordinariamente versátil.
Hoffman encarnou, em 1998, no filme Hapiness, do realizador Todd Solondz, uma das personagens mais marcantes da sua carreira. Seymour, que emerge como actor invulgarmente talentoso nesta comédia negra sobre a vida nos subúrbios de New Jersey, dá vida a Allen, um homem gordo e desinteressante que liga para estranhos para se masturbar ao telefone.
A forma como o actor humaniza uma personagem doentia, tornando-a alvo de compaixão e não de repulsa, chama a atenção da crítica e dá-o como uma certeza, confirmada pelas inúmeras interpretações que se seguem, sempre como actor secundário, até que em 2006 conquista o Oscar para melhor actor, ao dar vida a Truman Capote, o excêntrico repórter norte-americano que se celebrizou ao reconstituir o massacre de uma família, no estado rural do Kansas. Um crime que horrorizou os EUA no final da década de 50, e que Capote descreve minuciosamente, no livro «A sangue frio», depois de entrevistar familiares das vítimas e dos assassinos, recolher documentos oficiais, ler cartas e diários e assistir ao enforcamento dos criminosos. O livro, distinguido com o prémio Pulitzer, é considerado a primeira obra do Novo Jornalismo.
Quando ganhou o Oscar, Seymour agradeceu à sua mãe, Marilyn Hoffman Coonor, por ter criado quatro filhos sozinha e por tê-lo feito apaixonar-se pela representação, uma paixão dela que se tornou dele também.
Também Chaplin foi buscar à mãe – cantora e actriz - o talento para a representação. “Era o mimo mais prodigioso que vi. Ela ficava horas à janela olhando a rua e reproduzindo com suas mãos, seus olhos e a expressão de sua fisionomia tudo o que se passava lá em baixo. E foi olhando-a e observando-a que, não somente aprendi a traduzir as emoções com as minhas mãos e o meu rosto, mas também a estudar o homem”.
Mas, ao contrário de Hofman, Charlie viu a mãe partir cedo, ao ser internada num manicómio, depois de perder a voz por causa de um problema na laringe. A busca pela felicidade, tal como a personagem de Hofman em Hapiness, foi infrutífera. Casou quatro vezes e perdeu “quase todos os amigos que tinha”, segundo Carlyle T. Robinson, seu secretário particular, de 1916 a 1931, por lhe “faltar sinceridade”.
Hoffman, pelo contrário, era um homem meigo, descrito pelos colegas como atencioso e preocupado, mas que voltou a enredar-se na dependência das drogas, que quase o matou na juventude, transformando os últimos anos da sua vida, num drama puro, bem disfarçado por um actor versátil que usava o corpo como matéria-prima e a palavra como cinzel.
Chaplin não precisou de palavras para se consagrar, nem são precisas muitas palavras para falar sobre a sua obra, que começou há 100 anos com o filme «Fazer pela vida». De norte a sul não há ninguém que não conheça Charlot e não reconheça os trejeitos do vagabundo, que levou o sorriso a milhões de rostos.
Aos 46 anos, Hofman morreu como podia ter morrido uma das múltiplas personagens marginais que interpretou: estendido no chão da casa de banho, com uma seringa espetada no braço.
Chaplin morreu aos 88 anos, num dia de Natal, na Suíça, já muito doente e sob os cuidados da quarta mulher, 37 anos mais nova do que ele. Deixou um legado vasto de uma carreira dedicada ao cinema – como actor, realizador, produtor, humorista, empresário, escritor, comediante, dançarino e músico - mas também múltiplas polémicas: por se envolver com actrizes menores, por ser um homem “mentalmente e moralmente fraco”, que o actor Douglas Fairbanks Jr. descreveu como “egoísta acima do tolerável - uma figura majestosa e frágil de um homem que poderia ter feito história se não se tivesse preocupado tanto em fazê-la” e que, como aduziu Marlon Brando, “era perverso e sádico”.
Dois homens tão grandes na arte que os celebrizou e tão frágeis na vida. Como tantos outros.


*Publicada no dia 7 de Fevereiro de 2014

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