Na madrugada de segunda-feira, um homem começou a disparar
do interior de um apartamento nos arredores de Reiquejavique, capital da
Islândia. Os disparos acordaram a vizinhança e a polícia foi chamada, às 05h00.
Posicionados na rua, os agentes da Viking Squad dispararam
para tentar dissuadir o atirador, um doente mental que vivia sozinho depois de
ter estado internado. O homem respondeu com mais tiros disparados de uma
espingarda de matar pássaros. A polícia reagiu e mandou gás lacrimogéneo para o
apartamento. O atirador posicionou-se à janela e fez novos disparos.
Horas depois, o comandante da polícia, Haraldur Johannessen,
convocou os jornalistas para lamentar a tragédia e expressar condolências à
família da vítima. Pela primeira vez, a polícia matou um cidadão. Uma situação
“inédita”, como sublinhou o oficial. Os polícias receberam apoio psicológico e
um inquérito foi aberto para determinar como tudo aconteceu.
O luto que pôs a Islândia em “estado de choque” causou
espanto geral e mostrou a verdadeira dimensão do valor da vida humana na
pequena ilha, situada no Atlântico Norte. Um território gelado, habitado por
320 mil habitantes, onde 90% dos cidadãos têm espingardas de caça, mas nunca
são usadas contra ninguém; onde as pistolas são apenas acessíveis à polícia; e
onde, em 30 anos de existência, a Viking Squad nunca tinha feito um disparo.
Percebe-se, por esta história, o choque que se instalou
entre os islandeses e porque é que a polícia sentiu tanto a morte de um civil,
mesmo se essa pessoa tenha atentado contra a segurança de terceiros.
Percebe-se como, apesar do frio, é possível criar um
paraíso, sem desigualdades, onde 97% dos cidadãos dizem pertencer à classe
média alta, a margem de pessoas que se assume como ricos não ultrapassa os 3% e
onde não há pobres.
E percebe-se também porque é que a Islândia está entre os
países que lideram os índices de felicidade. Os seus cidadãos são igualitariamente
bem remunerados. Pagam muitos impostos, mas as taxas que pagam revertem para o
seu bem-estar social. Os índices de sucesso escolar são elevados, a assistência
médica é boa e generalizada e os padrões de leitura são dos mais altos. É o
país com mais livros publicados e mais livros lidos per capita no mundo, onde até
nos bancos de rua há dispositivos que permitem aceder a áudio-livros.
Independente da Dinamarca desde 1944, sem ter sido
necessário recorrer a armas, os islandeses não ostentam marcas de violência no
seu ADN. Têm um governo que vela por eles e que, há uma semana, deu mais uma
prova disso, depois de em 2008 recusar pôr os seus cidadãos a pagar pelos
excessos dos banqueiros, quando o país entrou na bancarrota, como fizeram
Portugal, a Grécia e Espanha.
O governo islandês anunciou que vai amortizar até 24 mil
euros (32 mil dólares) em cada empréstimo hipotecário das famílias, mantendo-se
indiferente às críticas das instituições financeiras internacionais e
cumprindo, desta forma, a promessa feita em campanha eleitoral.
O primeiro-ministro Sigmund David Gunnlaugsson prevê começar
a aliviar a dívida das famílias em meados de 2014, numa operação de quatro anos
que custará 883 milhões de euros (1,199 milhões de dólares).
Com um endividamento colossal, estimulado durante uma década
pelos bancos islandeses, o país entrou em colapso em 2008, nacionalizou as três
maiores instituições bancárias e sentou no banco dos réus o então
primeiro-ministro Geir Haarde, condenado quatro anos depois por não ter reagido
quando se vislumbrou a crise. E, num referendo popular, os Islandeses rejeitaram
reembolsar o Reino Unido e a Holanda em cinco mil milhões de dólares, alegando
que se recusavam a pagar pelos excessos dos seus banqueiros. Em Janeiro deste
ano, o Tribunal da Associação Europeia de Comércio Livre deu-lhes razão e absolveu
a Islândia deste encargo.
Para os que dizem que a utopia não é possível, as
desigualdades sociais são uma fatalidade e a violência é intransponível, aí
está um exemplo que os desmente. Com todos os dentes.
Publicada no dia 6 de Dezembro de 2013
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