terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Triângulo infernal (crónica publicada no Novo Jornal*)

Andy Lopez era um miúdo de 13 anos. Tocava trompete na banda da escola. Era descrito como “um aluno muito querido, muito popular, muito bonito, muito inteligente e capaz”.
Na terça-feira, o rapaz saiu à rua com uma espingarda de plástico, na cidade de Santa Rosa, Califórnia, nos Estados Unidos. Acabou morto pela polícia.
A polícia descreve o incidente como uma “tragédia”. Um comunicado do gabinete do xerife do Condado de Sonoma explica que dois ajudantes do xerife viram o rapaz com o que lhes pareceu ser uma arma verdadeira. Alega que os agentes ordenaram à criança que largasse a arma, antes de disparar. Mas não explica porque foi necessário disparar sete tiros sobre um corpo frágil.
Atiradores de elite escolheram como alvos mulheres grávidas e crianças, na guerra na Síria.
David Nott, um cirurgião britânico, que trabalhou em diversos hospitais no país, ao serviço da ONG «Syria Relief», apresentou as provas desta barbárie: um raio-X que mostra uma bala alojada na cabeça de um bebé. A mãe sobreviveu, o feto não.
Segundo o cirurgião, este não é um caso isolado. Há outras situações documentadas, envolvendo grávidas com sete e nove meses de gestação, o que não deixa margem para dúvidas sobre o seu estado.
O xerife de Sonoma prometeu uma investigação séria e transparente à morte de Andy. “Como pai de dois rapazes da mesma idade, não posso imaginar a dor que a família está a passar”, declarou o chefe da polícia.
Na escola, o sentimento é de dor. Uma dor semelhante à que se vive numa outra escola do estado de Nevada, onde um dia antes um professor foi morto por um rapaz, de 12 anos.
Michael Landsberry, de 45 anos, era um veterano que sobreviveu à guerra do Afeganistão. O professor de matemática tentou convencer a criança a largar a arma, depois de ferir dois colegas, dando hipótese a outros alunos de fugir. O rapaz ficou indiferente ao apelo e disparou.
O tiro ao alvo tornou-se uma espécie de desporto na guerra da Síria. David Nott testemunha que cerca de 90 por cento das cirurgias realizadas num dia normal, durante o tempo em que prestou serviço no país, foram provocadas por balas de atiradores de elite.
O cirurgião britânico relatou que os atiradores recebiam pequenos presentes, como maços de cigarro, consoante o número de pessoas que atingia durante o dia.
O jogo tinha particularidades e não era feito ao acaso. “Tivemos alguns dias, entre 10 a 15 ferimentos por balas, em que oito ou nove foram direccionados a uma área específica: a virilha esquerda. No dia seguinte, eram na direita. Parecia um jogo entre os atiradores”, descreveu Nott.
Fotos exibidas pela ONG «Syria Relief» mostram também crianças mortas com ferimentos de bala na cabeça.
Entre a história de Andy Lopez e a que é contada por David Nott há uma distância enorme. Andy foi morto num país em paz, enquanto que os relatos de snipers a disparar sobre grávidas e crianças ocorre num quadro de guerra. Mas entre um e outro há fenómenos de desagregação e desumanização que se assemelham aos que eclodem em cenários de guerra.
A isto acrescem sentimentos securitários que servem de rastilho à barbárie. No caso da Síria, porque há uma guerra em progressão, por si só, geradora de ódios; no caso dos Estados Unidos há um sentimento de ameaça permanente, alimentado pelas políticas de segurança interna que são, por si só também, deflagradoras de violência.
O sentimento que faz com que qualquer cidadão seja suspeito e contra os quais são cometidos diversos atropelos é um dos vértices de um triângulo infernal. O caso de Carlos Balsas, que mora há 17 anos nos EUA, comprova isso mesmo.
O professor universitário português, que dava aulas no estado de Arizona, foi detido, em Janeiro, durante uma visita ao monumento Sino da Liberdade, em Filadélfia, no estado da Pensilvânia. Abordado por um segurança, Carlos recusou mostrar o conteúdo da sua mochila e de um saco que transportava. Revoltado com a suspeita, respondeu que tinha explosivos dentro da mochila e virou costas.
O professor acabou por ser detido por ameaça terrorista, resistência à autoridade, posse de objectos criminosos e falso alarme e viu-lhe aplicada uma caução de 263 mil dólares. Esta semana foi libertado, depois de ter sido absolvido de todas as acusações.
Tal como na Síria, os EUA devem reflectir sobre a guerra que se instaurou no país. Caso contrário, não há quem a trave.


*Crónica publicada no dia 25 de Outubro de 2013

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