segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A fé que mata (crónica publicada no Novo Jornal*)

Spozhmai tem 10 anos e uma história que nada tem a ver com a sua idade.
A menina afegã está desde domingo numa esquadra de polícia no sul do país, depois de o irmão, um chefe local taliban, ter tentado convencê-la a usar um colete suicida para se fazer explodir num checkpoint (posto de controlo).
A história é confusa e tem tantos buracos que a polícia está com dificuldades em lidar com o caso. Tanto que não sabe se deve entregar a criança à família ou colocá-la numa residência protegida em Cabul, na capital.
O pai de Spozhmai já foi preso e as autoridades continuam à procura do irmão, embora os taliban, através do seu porta-voz, Qari Yousef Ahamdi, recusem qualquer responsabilidade, alegando que a história é propaganda do Governo.
O regresso a casa pode significar uma sentença de morte, apesar de o Presidente do Afeganistão Hamid Karzai ter pedido ao Ministério do Interior que obtenha garantias de que Spozhmai pode regressar, porque, considera ele, o lugar da criança é junto da família.
Em teoria é assim que deve ser. Mas, num país estilhaçado por mais de três décadas de guerra, não há alicerces que garantam a sustentabilidade da família enquanto garante de segurança e integridade.
O fanatismo religioso transforma a fé em ódio, numa cruzada que derruba qualquer tipo de valores. E o recurso a crianças da própria família como arsenal de guerra é visto como a face derradeira da desumanização, em nome de Deus ou de um ser supremo.
“Obrigar crianças a cometer ataques suicidas contraria as instruções do islão sagrado e os valores da cultura afegã”, clamou o Presidente Karzai. A história recente do país desmente-o. Apesar de serem raros, há casos documentados, como revelou à Associated Press Heather Barr, a principal investigadora da Human Rights Watch, no Afeganistão.
Em 2011, na província de Uruzgan, no centro do país, uma menina, de oito anos, morreu num checkpoint, quando a mala de explosivos que os taliban a tinham mandado carregar rebentou. No Iraque, já eram frequentes os relatos de ataques suicidas com adolescentes.
Em nome do islão, o Afeganistão e o Iraque estão mergulhados em caos desde que o Presidente George W. Bush ordenou intervenções militares nos dois países, na sequência dos atentados de 11 de Setembro de 2001, nos EUA.
As intervenções no Afeganistão e no Iraque não derrubaram a Al-Qaeda, nem travaram os talibans, antes pelo contrário inflamaram o ódio, criando ramificações difíceis de conter, que alastram a outros países.
Os jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIL, na sigla inglesa) declararam esta semana “guerra total” aos antigos aliados islamistas que combatem na Síria e ao Governo do Iraque, ambos controlados por xiitas.
O aviso é claro e contempla recompensas para quem ajudar a aniquilar inimigos. “Nenhum de vocês sobreviverá, faremos de vocês um exemplo para todos os que pensarem seguir o mesmo caminho”, afirmou o porta-voz do ISIL, Abou Mohammed al-Adnani.
A guerra trava-se entre várias facções islamistas. Apenas escapa à declaração a filial síria da Al-Qaeda, a Frente al-Nusra. Na Síria é, de resto, proposto um cessar-fogo entre os islamistas de forma a que os vários grupos se possam concentrar na luta contra Bashar al-Assad, o que revela bem a natureza da guerra na Síria: o ódio entre várias facções do islão pelo controlo do poder.
O fervor religioso também fez mais baixas entre os cristãos no ano que passou. O número de cristãos mortos quase duplicou. Só na Síria morreram mais fiéis do que em todo o ano anterior, revela a Open Doors (Portas Abertas), que documentou 2.123 cristãos mortos em 2013, em todo o mundo, e estima em 100 milhões o universo de fiéis perseguidos. Outras organizações apontam mais de oito mil mortos.
Calculados em 2,2 mil milhões em todo o mundo, cerca de 32% da população mundial, os cristãos enfrentam restrições à liberdade religiosa e hostilidade em 111 países, de acordo com a Pew Forum on Religion and Public Life, organização sediada nos EUA que estima em 99 o número de países onde há limitações à fé islâmica.
Curiosamente, a Coreia do Norte lidera a lista dos 50 países mais perigosos para os cristãos. Ali apenas é permitida a adoração a um deus: o terreno Presidente Kim Jong-un. E também em nome dele se mata indiscriminadamente.


Publicada no dia 10 de Janeiro de 2014

Sem comentários:

Enviar um comentário