segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Um quarto na rua (crónica publicada no Novo Jornal*)


A Fundação Abbé Pierre, em parceria com a Rádio France Internacional, ofereceu smartphones a cinco sem-abrigo para que possam contar o seu quotidiano, na rede social twitter, e assim ajudar a lutar contra o preconceito em relação aos que vivem na rua.
A iniciativa «Tweet2Rue» visa ainda combater a solidão dos moradores de rua, como os descreve a fundação, e está a surpreender os milhares de seguidores que o projecto já tem.
O canal de televisão Odisseia tem um programa que, embora diferente na concepção, tem a virtude de pôr as pessoas a olhar para os mais desafortunados de outra forma, para deixarem de ser vistos como inadaptados sociais ou preguiçosos que não querem trabalhar.
O programa transforma multimilionários em pobres e põe-nos a viver numa casa sem condições e com uma mensalidade ínfima, com a qual se alimentam e pagam o alojamento.
Durante os cinco dias desta experiência, o milionário tem de passar por pobre, arranjar emprego e encontrar no meio onde é colocado alguém - pessoa ou instituição - a quem oferecer, no final, um mínimo de 50 mil dólares da sua fortuna pessoal.
Embora tenha atrás de si uma câmara de televisão, o que à partida condiciona o comportamento das pessoas, o programa é revelador e transformador.
Quem nele participa raramente chega ao fim da experiência da mesma forma como a iniciou. Na maior parte das vezes, os participantes não têm a percepção do que é viver na pobreza e de como basta um azar, ou uma sucessão de azares, para as pessoas verem as suas vidas transformadas num inferno, do qual dificilmente conseguem sair. Nestes meios desfavorecidos encontram também pessoas que são o milagre da humanidade e que fazem da sua vida uma entrega aos outros.
O que se vê no programa do canal Odisseia são fragmentos da vida de centenas de pessoas, que vivem as angústias de ter de contar tostões para sobreviver, muitas vezes num equilíbrio difícil para manter a sanidade mental intacta.
O projecto francês «Tweer2Rue» vai um pouco mais longe e põe os sem-abrigo a partilhar o dia-a-dia, com milhares de pessoas em vários pontos do globo.
Nicolas (@nickopompons), Sébastien (@DjamaikaPtiseb), Patrick (@kanter57640), Ryan (@usher226) e Manu (@115toimeme) foram os escolhidos para este projecto. Têm idades entre os 24 e os 47 anos e experiências de vida completamente diferentes.
Patrick, o mais velho, decidiu participar “mais para rir do que qualquer outra coisa”, disse ele, mas depressa percebeu que a experiência era muito mais do que isso. Num dos tweets, este condutor de camiões queixou-se de problemas de visão. Um oftalmologista foi procurá-lo e convidou-o a ir à sua loja escolher um par de óculos.
Patrick é pai de dois filhos, um deles está na universidade e o outro é a “causa dos seus problemas”. O desemprego deixou-o sem tecto e as desavenças com a família empurraram-no para a rua. Já lá vão quase três anos.
“Sou uma pessoa solitária e a desconfiança tornou-se a minha arma. Em geral, não confio em ninguém. É estúpido, porque há alguns que merecem. De qualquer forma, eu já não confio nem em mim mesmo”, diz de si próprio.
Ryan, de 24 anos, é o mais novo do grupo e tem atrás de si uma história que começa noutro continente. Natural da República Democrática do Congo, o seu pai apoiou um adversário do Governo e, com isso, ditou a sorte da família.
“O meu pai era um comerciante e vivemos muito bem na RDC. Até que um dia, na véspera de uma viagem, homens armados invadiram a minha casa e levaram o meu pai. Fiquei 15 dias numa prisão, onde fui violado pelos guardas, interrogado, chicoteado e amarrado no tecto”, recorda na página do projecto.
Após os dias de inferno, Ryan conseguiu fugir, graças à ajuda de um guarda. Acabou num avião, com documentos falsos, em direcção a uma nova vida.
“A França, para mim, era apenas um país de turismo. Com a minha mãe e irmãs, viajei pela China, África do Sul, Camarões, Senegal, Itália, Espanha e Alemanha”.
Desta vez, a viagem não foi de turismo. Acabou a deambular pelas ruas de Paris, até que a sorte mude.
A história de Ryan, tal como a de Nicolas, Sébastien, Patrick e Manu, já teve um norte que, de repente, se perdeu.
É bom perceber que ninguém está livre de ter um quarto na rua.


*Publicada no dia 15 de Novembro de 2013

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