sábado, 22 de fevereiro de 2014

Basta pedir (crónica publicada no Novo Jornal)




A tradição nasceu em Nápoles, mergulha no tempo que se seguiu à segunda Guerra Mundial e foi reavivada com a crise na zona Euro, depois de décadas em desuso.
A ideia é simples. Um cliente entra num café, consome um bolo e paga dois, três, ou quatro. O «caffè sospeso”, assim se chama o produto que é pago a mais, destina-se a alguém que venha a seguir e que pergunte se há alguma coisa suspensa.
O que fica suspenso pode ser tudo o que estiver à venda no estabelecimento: um café, um galão, um bolo, uma sandes… e destina-se a qualquer pessoa que o requisite, seja um sem-abrigo, um pobre ou um remediado que tenha esquecido a carteira em casa.
Quem dá não quer mostrar que dá; quem recebe também tem direito a anonimato neste exemplo perfeito de ajuda ao próximo, mais próprio da ficção do que da realidade. Ou como diz o realizador de cinema napolitano Luciano de Crescendo, que dedicou um livro a este hábito: “Quem dá não se exibe e quem recebe não tem de mostrar gratidão”.
Comovido com o gesto dos napolitanos, que já se estendeu a outras cidades de Itália, um canalizador de Cork, na Irlanda, resolveu criar uma página no facebook a explicar e a incentivar o conceito e, no espaço de dias, viu o seu apelo ter resultados.
Graças a John Sweeney, de 28 anos, a tradição napolitana tem réplicas no Reino Unido. Vários estabelecimentos, incluindo algumas grandes cadeias, como a Starbucks, descarregaram o logotipo do «Suspended Coffes, que um amigo seu criou, e aderiram à iniciativa. Não custa nada e os benefícios são enormes.
Pendurados ficaram vários desempregados que na semana do Natal obrigaram ao encerramento de uma das lojas da cadeia de supermercados portuguesa «Pingo Doce».
No dia 4 de Dezembro, um desempregado, que em Setembro escreveu ao Presidente da República a dizer que ia deixar de pagar impostos por não ter dinheiro, anunciou que ia ao Pingo Doce fazer compras, mas que não ia pagar por não ter dinheiro.
A loja recebeu Nélson Arraiolos com compaixão e ofereceu-lhe um cabaz de compras, que ele partilhou com outras pessoas, igualmente necessitadas.
Animado pela iniciativa, um movimento anónimo convocou os desempregados para uma acção nas vésperas de Natal, sob o lema «Dia 21 de Dezembro, exija o seu cabaz», com o argumento de que “se oferecem a um, oferecem a todos”.
Cinquenta pessoas concentraram-se, logo pela manhã, numa das lojas do grupo em Lisboa. Como viram recusada a entrega dos cabazes, os desempregados resolveram pedir o livro de reclamações. A polícia não teve outra alternativa senão encerrar temporariamente o estabelecimento já que não havia mãos suficientes para despachar tanta reclamação.
O grupo Jerónimo Martins, que há um ano teve de encerrar várias lojas por avalanches de pessoas que lotaram os seus stocks, ao anunciar que ia oferecer descontos de 50 por cento em compras superiores a 100 euros (136 dólares), no dia do Trabalhador, devia ter aprendido a lição. Ao oferecer um cabaz a quem não tem dinheiro abre um precedente. Porque, por estes dias, o que mais há em Portugal são desempregados. E, ou continua a tradição, ou não a cria.
Dar não custa nada, mas há quem tenha muito e nada consiga dar. É por isso que o mundo está como está. Com ricos cada vez mais ricos, porque não querem partilhar, e com pobres cada vez mais pobres, que não têm como.
Felizmente, há quem fuja a esta regra e queira repartir, sem ceder à tentação de apregoar a generosidade.
No largo de São Paulo, em Lisboa, um restaurante resolveu dar de comer a quem tem fome. “Se tem fome passe por cá, entre as 16 e as 17, que nós damos comida”, lê-se num quadro negro, pendurado à entrada da Taberna Tosca. Sem alaridos, nem parangonas nos jornais.
Inaugurada em 2010, a casa prima pela informalidade e pelo ambiente descontraído, apostando nos pratos portugueses para atrair a clientela. Bem servidos, os clientes voltam; animados por este gesto, muitos ficam motivados a visitar o estabelecimento, porque, desta forma, ajudam a ajudar.
A comida na Taberna Tosca não é recusada a ninguém naquele horário. Se já não houver refeições, há sempre pão para aviar uma sandes.
Qualquer sítio é um bom sítio para suspender um café, uma refeição, um cabaz de compras… um pingo, um doce…


Publicada no dia 28 de Dezembro de 2013

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