quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Gás a mais (crónica publicada no Novo Jornal*)

Um anúncio protagonizado pela actriz Scarlett Johansson desencadeou forte polémica esta semana, nos EUA, por atentar contra valores humanitários e também por beliscar os interesses de dois gigantes da indústria dos refrigerantes.
A jovem actriz, que já foi eleita a mulher mais sexy do mundo, é o rosto de uma campanha que a empresa israelita SodaStream fez para promover uma máquina de fazer bebidas com gás em casa.
Tudo corria bem se a empresa não promovesse a presença israelita em território da Palestina. E ela própria não tivesse uma fábrica na Cisjordânia, o que levou a «New York Magazine» a aplicar à campanha o rótulo «Bolhas de sangue», associando-se à onda de críticas.
As primeiras reacções ao anúncio não foram motivadas pela associação da actriz à empresa israelita. Deveram-se ao facto de a protagonista de «O Amor é um lugar Estranho» ter importunado dois gigantes, ao afirmar no final do anúncio “desculpa Coca-Cola e Pepsi”.
A cadeia Fox, do australiano Rupert Murdoch, ordenou a expulsão do filme promocional dos seus canais e a organização do campeonato de futebol americano baniu o anúncio da Super Bowl, que decorre este domingo, em Nova Iorque, alegadamente por temer a reacção dos dois gigantes dos refrigerantes.
Por mais que Scarlett venha invocar argumentos a seu favor, alegando que não tenciona “ser a cara de nenhum movimento, conflito ou divergência social ou política”, não pode esquecer o seu papel como modelo e embaixadora mundial da Oxfam, que incompatibiliza a acção de salvar vidas com a ligação a uma empresa que promove uma ocupação e colonização ilegais. Com grande derramamento de sangue.
As figuras públicas, com grande capacidade de moldar as decisões das pessoas, não podem descurar o que fazem e o que dizem porque isso pode fazer a diferença entre a vida e a morte.
Uma líder do partido Congresso Nacional Indiano no estado de Maharashtra, oeste do país, afirmou, terça-feira, uma semana depois de 13 homens serem detidos por participar numa violação conjunta, que as mulheres vítimas de violação podem ter atraído os ataques por causa das suas roupas e comportamento.
Asha Mirje não se limitou a esta infeliz declaração. Questionou por que razão a estudante, de 23 anos, que foi violada por um grupo de homens dentro de um autocarro em Nova Deli, em 2012, vindo a falecer na sequência dos graves ferimentos, estava na rua àquela hora da noite.
Ou seja, a dirigente do partido político indiano mais antigo, não só culpou as vítimas de um crime hediondo, que atenta contra a dignidade de quem o comete e de quem o sofre, como lançou um sinal de incentivo aos agressores.
Fica, no entanto, por explicar que culpa tem uma criança iraniana, de quatro anos, que foi violada na segunda-feira por um homem, de 32 anos, quando viajava com a mãe no Estado turístico de Goa.
E qual foi a responsabilidade de uma adolescente, de 16 anos, que no dia 26 de Dezembro foi violada e que, um dia depois, voltou a ser violentada por um grupo de seis homens, quando regressava a casa, após apresentar queixa numa esquadra de Madhyagram, no norte de Calcutá.
A adolescente não devia, segundo Asha Mirje, ter apresentado queixa e, assim, furtava-se a uma violação colectiva, após a qual os violadores atearam fogo ao seu corpo, acabando por morrer a caminho do hospital?
Enquanto houver quem, ilegitimamente, aponte o dedo às vítimas, os agressores continuam a ter caminho aberto para perpetuarem um crime que devia envergonhar a Humanidade.
A vergonha voltou a cair esta semana sobre organizações cristãs, depois de ter sido revelado que crianças aos cuidados de uma instituição ligada ao «Exército de Salvação», na Austrália foram “alugadas” a pedófilos.
As denúncias recaem sobre o lar de Bexley, nos subúrbios de Sidney, onde a polícia investiga supostos abusos a menores desde 1990, no âmbito de uma comissão que analisa a gestão do «Exército de Salvação» em quatro dos seus centros entre 1996 e 1977.
O responsável do lar já tinha sido desculpado, em 1997, de acusações de sodomia, agressão comum e ataque indecente, 11 anos antes da sua morte. As acusações não ficaram enterradas então e surgem agora novas informações que envolvem outros trabalhadores numa alegada rede de pedofilia no abrigo.
Há pessoas que, claramente, têm gás a mais na cabeça e, quando falam e agem, diluem na atmosfera uma parte significativa dos valores que deviam reger o mundo.


*Publicada no dia 31 de Janeiro de 2014

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