segunda-feira, 21 de junho de 2010

Entrevista a Saramago





































Em Novembro de 2003 tive oportunidade de entrevistar José Saramago, após uma visita a Pinhel, pequena cidade do distrito da Guarda, no interior de Portugal.
Na entrevista ao Jornal do Centro  (semanário publicado em Viseu, do qual fui directora e que em 2004 ganhou o prémio Gazeta Imprensa Regional, atribuído pelo Clube de Jornalistas ao melhor jornal regional do país), Saramago revela a dimensão do Homem que era.

José Saramago lamenta apatia e ausência de sonhos dos portugueses
“Portugal já não se deixa ler. Só conseguimos soletrá-lo…”

“Continuar a escrever” é o desejo de José Saramago. O mais universal escritor português que, em Outubro, desceu ao “calcanhar do mundo” para apadrinhar um vinho «O Cidadão de Cidadelhe», cujas receitas revertem a favor de obras no concelho de Pinhel. Na curta passagem pelo distrito da Guarda, o Nobel da Literatura aceitou ser entrevistado, mas a pressão do tempo acabou por obrigar a verter as perguntas para o papel e a enviá-las por fax para a pequena ilha das Canárias, onde Saramago vive com a sua mulher Pilar. Nas respostas surge uma visão crítica de Portugal, do mundo e dos cidadãos que se deixam governar, não por políticos, mas por “comissários” do poder económico.

Entrevista Isabel Costa Bordalo
Fotografias Isabel Nogueira

Na palestra que fez na escola de Pinhel, José Saramago em vez de uma lição de literatura deu uma lição de vida. Foi uma adaptação aos interlocutores ou faltam hoje lições de vida?
Não sei se faltam hoje lições de vida. Se as há, dará cada qual as que possa e receberá cada qual as que queira. No caso dos estudantes de Pinhel, não faria sentido falar de uma obra que eles não conhecem, a minha, nem da literatura em geral, tarefa impossível tendo em conta a vastidão do assunto. Optei por aquilo a que chama “lição de vida”. Espero ter tido, ao menos, alguma utilidade.

Acentuou a necessidade de as pessoas não olharem para a juventude como um valor, dando o seu próprio exemplo. Porque é que sentiu necessidade de o sublinhar?
Precisamente porque hoje se toma a juventude como um valor. Dessa ideia totalmente errónea são os jovens as primeiras vítimas.

Disse um dia que tudo na sua vida começou tarde (o verdadeiro amor e o reconhecimento literário). É de alguma forma consequência do espartilho que viver numa ditadura política coloca no homem ou precisou de tempo?
Precisei de tempo. Creio que a minha adolescência se prolongou pela idade adulta. Digamos que durante esse período logrei a “proeza” de ser, ao mesmo tempo, maduro e cândido.

Porque é que precisou de 20 anos, entre o seu primeiro e o segundo livro, para voltar a publicar? E o que é que o fez sentir que já tinha algo para dizer?
Talvez a leitura de um livro de poemas de José Régio, Filho do Homem. Foi como se tivesse dito para mim mesmo: “Eu também sou poeta”. O que nada então poderia dizer-me é que seria também romancista, embora fosse por aí que comecei vinte anos antes…

Nos Cadernos de Lanzarote, escreve, a determinada altura: “Pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa Invisível, mas omnipresente, que é o autor”. Li também uma frase sua em que diz: “Tenho vindo a implantar no homem que fui as personagens que criei”. A questão que lhe coloco é se nenhum escritor escapa à tendência autobiográfica ou se as personagens que cria podem moldar o escritor?
Escrevi um dia que tudo é autobiografia. Continuo a acreditar que sim. Isso, porém, não é incompatível com a declaração de “ter vindo a implantar no homem que sou as personagens que crio”. Note-se que implantar não significa moldar. Creio ter uma identidade suficientemente sólida para mudar dentro do que sou e não para converter-me noutra coisa…

Disse aos estudantes que o ouviram em Pinhel que não é obrigatório ler e que ler não deve ser uma imposição. Ainda assim, é através da leitura que o homem se universaliza e sai do seu quadrado. Presumo que sempre que visita uma escola, professores e alunos o questionem sobre a forma de criar gosto pela leitura. O que responde?
Que se recupere o costume de ler em voz alta na aula. Que se discuta o que se leu e ouviu ler. Não custa dinheiro e estou certo de que seria muito mais produtivo do que o tem sido as dispendiosas campanhas de promoção da leitura que, de vez em quando, se lançam sem resultados que se vejam.

Como é que recorda, após ter recebido o Nobel da Literatura, esta frase de uma carta que escreveu a Eduardo Lourenço: “Leva em conta que, como escritor, eu sou como os pretos e as mulheres. Tenho que valer duas vezes para ser reconhecido uma”.
Que valeu a pena ter-me esforçado por valer duas vezes…

Essa frase é tão mais irónica na medida em que Saramago acabou por ser o escritor português que mais contribuiu para a universalização da literatura portuguesa. Alguma vez teve essa ambição?
Nunca tive ambições, nunca pensei em carreiras literárias nem em projecções mundiais, simplesmente fui fazendo o meu trabalho o melhor que sabia. Não posso queixar-me das consequências.

Considera-se um escritor mais transversal depois de ter recebido o Nobel? Ou seja, se hoje em dia pode ser comprado por um motorista de táxi e por um intelectual parisiense? Essa ideia agrada-lhe?
Sempre fui lido por toda a gente, independentemente de idades, profissões e condições sociais. Hoje agrada-me particularmente que sejam tantos os jovens que me lêem. Na América Latina, por exemplo, quando apresento um livro (às vezes perante milhares de pessoas), 70 ou 80 por cento são adolescentes.

Está a escrever “Ensaio sobre a lucidez”, que como disse: “Será mais explosivo que Ensaio sobre a cegueira”. Quer explicar porquê?
Sabê-lo-á quando for publicado. Até lá, a minha boca está fechada.

Quando será o lançamento de Ensaio sobre a lucidez?
Talvez em Março, talvez em Abril.

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“O pior é a ausência de sonho e de ideais”

Durante a sua visita a Cidadelhe, disse que os portugueses devem deixar de ter medo de Espanha e passar a ter medo do desinteresse, do laxismo. São palavras que encaixam nos portugueses em contraponto com os espanhóis?
Não fiz nem faço comparações entre português e espanhóis. Cá e lá, más fadas há. Os problemas de Espanha não são meus, os de Portugal, sim. Por alguma razão nos tornámos no país mais pobre da União Europeia. O pior, no entanto, é a pobreza do espírito, essa apatia, esse quem vier atrás que feche a porta, essa ausência de sonho e de ideais.

José Saramago, que se incompatibilizou há anos com o poder em Portugal por causa do episódio Sousa Lara, como é que reage a quadros de Portugal como o que traçou há poucas semanas o El Pais?
Se fosse eu o autor do artigo que saiu em El Pais teria sido muito mais duro.

Presumo que vá tendo contacto com o que se passa em Portugal através dos jornais, como é que lê Portugal?
Portugal já não se deixa ler. Só conseguimos soletrá-lo…

Disse numa entrevista dada a uma jornalista cubana, Rosa Mariam Elizalde, publicada no dia 12 de Outubro de 2003, que tem uma relação de afectos com os espanhóis. E com os portugueses, que relação tem?
A de alguém que continua a amar o seu país, mas que já deixou de idealizá-lo.

O senhor tem sido um dos escritores mais críticos em relação à ordem das coisas. “Se este mundo serve, eu sou um imbecil”, disse em 1998, após a atribuição do Prémio Nobel. No início da guerra do Iraque, foi uma das vozes mais críticas contra a decisão dos Estados Unidos. Se essa é uma tradição dos intelectuais (assumirem-se como porta-vozes dos mais desfavorecidos), também é certo que essas vozes já foram mais. Há um acomodamento dos criadores?
É possível que haja um “acomodamento” dos criadores, mas o pior de tudo é o acomodamento dos cidadãos.

A sua militância no PCP e a amizade a Cuba são sistematicamente evocadas. Vargas Llosa, numa visita recente a Portugal, mostrou-se satisfeito por o senhor ter criticado o regime cubano pelo fuzilamento de alguns contestatários ao regime de Fidel. Susan Sontag questionou-se sobre o porquê de Saramago não deixar de ser comunista. Fica abalado com este tipo de afirmações?
Não rompi com o povo cubano, simplesmente reservo-me o direito de dizer o que penso como e quando considerar necessário. Vargas Llosa ainda teria ficado mais satisfeito se eu tivesse aderido às suas teses neoliberais. Quanto à pergunta da minha amiga Susan Sontag, só tenho uma resposta: “Por fidelidade a mim mesmo”.

Nessa entrevista ao jornal cubano, afirma que os “EUA e a Europa não são mais que comissários do poder económico”. Os programas políticos hoje esgotam-se no material?
Todos os governos do mundo, e não só os dos Estados Unidos e da Europa, são hoje aquilo a que chamo “comissários políticos” do poder económico. É uma evidência, e, como evidência que é, não necessita demonstração.

Pego numa frase sua, em que diz que “habitamos fisicamente um espaço, mas habitamos sentimentalmente uma memória”, para lhe perguntar em que memória habita?
A aldeia da minha infância e da minha adolescência, a Lisboa dos anos 30.

Dentro do ser universal que Saramago é, que marca o coloca no seu país de origem: Portugal?
A língua, a memória, a cultura. O ter nascido no povo.

O que pode querer mais um homem de vida longa e uma longa lista de feitos, como o Nobel?
Continuar a escrever.

Perfil

Em casa de Saramago em Lanzarote todos os relógios estão parados nas quatro horas da tarde. Não significa que o tempo tenha parado aí, mas é como se o relógio marcasse a hora em que o mundo começou para Saramago, explicou na primeira pessoa numa entrevista a um jornal cubano. Esse momento está relacionado com Pilar, o centro da vida de José Saramago, que nasceu na aldeia ribatejana de Azinhaga, Golegã, no dia 16 de Novembro de 1922, embora o registo oficial o dê como nascido dois dias depois.
Após completar os estudos secundários (liceal e técnico) em Lisboa, onde a família se fixara quando tinha três anos, ingressou na sua primeira profissão - serralheiro mecânico, mas ali ficou por pouco tempo. Foi desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, editor, tradutor, jornalista, até que se deteve na profissão de escritor.
O seu primeiro livro foi publicado em 1947 -“Terra de Pecado”-, tendo estado depois sem publicar até 1966. Colaborou como crítico literário na Revista “Seara Nova”. Em 1972 e 1973 fez parte da redacção do Jornal “Diário de Lisboa”, onde foi comentador político, tendo também coordenado, durante alguns meses, o suplemento cultural daquele vespertino. Pertenceu à primeira Direcção da Associação Portuguesa de Escritores. Entre Abril e Novembro de 1975 foi director-adjunto do “Diário de Notícias”. Desde 1976 vive exclusivamente do seu trabalho literário.

4 comentários:

  1. 1 - Muito boa, a entrevista. Tanto o entrevistado como a entrevistadora estiveram muito bem.

    2 - Pinhel é cidade e não vila, embora seja mais pequena do que muitas e muitas vilas. O rei D. José elevou Pinhel à categoria de cidade em 1770:
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Pinhel

    3 - Antes do 25 de Abril existiu um mensário chamado Jornal do Centro que se publicava na Pampilhosa, concelho da Mealhada. Nele intervinha regularmente o escritor angolano Manuel Rui Monteiro, que vivia então em Coimbra. Talvez ele fosse mesmo o principal responsável pelo jornal.

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  2. Caro Fernando Ribeiro

    Obrigado pelas suas palavras.

    Tem toda a razão. Pinhel não é vila, mas sim cidade. Foi um lapso que se justifica por uma ideia de vila, sem sentido pejorativo, que tenho e que envolve uma noção de comunidade que as cidades não têm.

    Em relação ao Jornal do Centro, há várias publicações no centro de Portugal que contém no nome a designação Centro, alguns já nem sequer são publicados, mas continuam com o nome activo. Por isso, em 2002, quando criámos o semanário em Viseu tivemos imensas dificuldades para registar o título. A ideia inicial era chamar ao jornal simplesmente «O Centro», mas a tentativa foi chumbada. Acabou por ficar Jornal do Centro.
    Fico contente por saber que o escritor Manuel Rui Monteiro iniciou cedo a colaboração com os jornais, no caso com um português. É de pessoas assim que os jornais precisam; é por pessoas como ele que os leitores se fidelizam.

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  3. Belo resgate de entrevista :) Naqueles tempos dava gosto trabalhar por ali :))))

    Dá para ler a ICB, nas entrelinhas das perguntas :)

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