E foi com surpresa e pesar que, à chegada a Luanda, recebi a notícia: "Morreu (José) Saramago.
Gosto de Saramago e basta-me isso.
Não é de hoje (na morte o coro dos elogios sobe de tom com uma força desconcertante), é de sempre.
Desde que o comecei a ler.
O Nobel da Literatura deu-lhe maior visibilidade e ofereceu-me um novo impulso para me embrenhar na obra do autor de «Levantados do Chão».
Não gostei de tudo o que li, como não gostei de todos os livros de outros autores, mesmo daqueles que estão no topo do topo das minhas preferências.
Mas identifiquei-lhe sempre um traço próprio e uma forma única de, nas suas reflexões, interpelar o leitor e reconheci-lhe em todos os momentos legitimidade para falar, para elevar a sua voz contra as injustiças do mundo ou para defender o que lhe parecia justo.
Por isso, foi sempre com incómodo que vi Saramago ser injustiçado, não criticado, porque a crítica faz-se com argumentos e no meio das polémicas em que o Nobel da Literatura português se viu envolvido encontrei sempre muito pouca ponderação e razoabilidade, salvo algumas excepções.
A última dessas polémicas andou à volta de declarações de Saramago sobre o seu livro «Caím».
Custou-me a dureza das palavras com que se lhe dirigiram; feriu-me o ódio que vi plasmado em muitas das reacções; e pesou-me o desrespeito que, uma vez mais, senti em relação a uma das personalidades portuguesas que mais longe e mais alto elevaram o nome de Portugal e a língua portuguesa.
O episódio serviu de pretexto ao Paralelos que escrevi, na edição 92 do Novo Jornal, publicada a 23 de Outubro de 2009 (que republico neste blogue).
Hoje recuso comentar a ausência das duas mais altas figuras de Portugal - Presidente da República e Presidente da Assembleia Nacional - no funeral do autor de «Todos os nomes».
Limito-me a um até sempre Saramago.
Porque é dos poucos portugueses com direito à imortalidade.
Ódio de estimação (crónica publicada no Novo Jornal a 23 de Outubro de 2009)
“Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
(…) Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
Se é que as criou, do que duvido -
Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
(…) Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?”
Se Fernando Pessoa, o poeta da língua portuguesa, tivesse escrito «O meu menino Jesus» hoje era previsível que Portugal se erguesse em protesto pela heresia e o tentasse pregar na cruz, como fez com José Saramago.
A obra de Pessoa e dos seus heterónimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis) contém mais ofensas e interrogações sobre Deus e as religiões e nunca ouvi ninguém levantar a voz contra os poemas daquele que celebrizou a frase “A minha Pátria é a língua portuguesa”.
“Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come!” (Tabacaria, de Alberto Caeiro)
A José Saramago não se perdoa nada. Perdoou-se extemporaneamente quando lhe foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura. Nessa altura Portugal ergueu-se, hipocritamente, para celebrar um feito que só um português, Egas Moniz, tinha alcançado até aí ao conquistar um Prémio Nobel da Medicina. Deram-se hossanas, mas a Igreja não deu tréguas na sua “paixão”. E logo o Vaticano se apressou a repudiar a atribuição da honraria a um “comunista inveterado”. Assim mesmo. Um “comunista inveterado” não é, segundo a Igreja Católica, merecedor de um prémio literário. Entendimento que encontra paralelo com a avaliação feita por um dos poucos portugueses que mantiveram, naquele período de euforia nobelística, a coerência. Sousa Lara, o subsecretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva que, em 1992, vetou o romance «O Evangelho segundo Jesus Cristo» da lista dos concorrentes ao Prémio Literário Europeu nunca mostrou arrependimento. Manteve-se firme na sua antipatia e confessou-o quando Durão Barroso, já na qualidade de primeiro ministro de Portugal, chamou Saramago, que desde 1992 se refugiou na ilha espanhola de Lanzarote com a sua mulher Pilar del Rio, para pedir desculpas em nome do país e fazer as pazes com o único Nobel da Literatura português.
Afinal um Nobel é sempre um Nobel e este é visto como o responsável efectivo pelo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa, sendo lido em quase todos os países do mundo, pelo menos aqueles que vivem em democracia e liberdade.
Os portugueses não gostam de Saramago vá se lá saber porquê. A maior parte nunca o leu, mas critica-lhe a pontuação indisciplinada, os parágrafos longos e não lhe perdoa a militância política, nem as intromissões nos assuntos religiosos.
Por isso, agarraram-se com unhas e dentes aos comentários que o escritor fez em Penafiel, no norte de Portugal, aquando do lançamento do seu último livro «Caím», sobre a Bíblia, livro que “passou mil anos, dezenas de gerações, a ser escrito, mas sempre sob a dominante de um Deus cruel, invejoso e insuportável”.
Saramago tem todo o direito de criticar a Bíblia, um “manual de maus costumes”, como tem direito à interrogação sobre a acção dos homens, sem que um português se erga a pedir que lhe seja retirada a cidadania, como fez esta semana o eurodeputado do PSD Mário David, numa reedição da atitude de Sousa Lara. Os tempos da inquisição e de episódios como o de Galileu Galilei (pai da ciência moderna), que foi presente ao Santo Ofício, por ousar dizer que a terra girava em torno do sol, vão longe e não precisam de réplicas.
"Quem for encontrado, será morto; quem for alcançado, morrerá ao fio da espada. As suas crianças serão despedaçadas diante dos seus olhos; as suas casas serão saqueadas e as suas mulheres serão violentadas".
Não. Este não é Fernando Pessoa, nem José Saramago. É um excerto da Bíblia, de «Javé julga as Nações», 13-23. O livro sagrado que Saramago diz ser um catálogo de crueldade e do pior das natureza humana. Este excerto não o desmente! Tal como não é possível desmentir o papel importante que a Igreja tem tido na ajuda aos mais pobres e que encontra sustentação e fundamentação no livro que agora Saramago critica.
É pena que este episódio não revele mais do que um ódio de estimação ao autor de «Ensaio sobre a Cegueira».
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