domingo, 20 de junho de 2010

Come chocolates, come (crónica publicada no Novo Jornal)

Passei a infância a ser reprimida – “Não comas chocolate, olha que faz mal aos dentes”. Entrei na adolescência a ouvir: “Não comas chocolates que provoca borbulhas”. Na maioridade o vaticínio repetiu-se até à náusea – “Não comas chocolate, não vês que engorda”.
Vêm agora os cientistas dizer que, afinal, comer chocolates faz bem à saúde.
Como? Ora bolas, o chocolate anos a fio ser diabolizado e dizem-me agora que o cacau tem propriedades que atrasam o envelhecimento e que causam felicidade.
A segunda já se sabia – quem é que nunca se deleitou com uma barra de chocolate -, mas a primeira conclusão causou-me estranheza.
Em 2007, surgiram indícios que apontavam para a teoria agora explanada, mas na guerra do marketing a notícia derreteu-se com a desconfiança de que seria estratégia da empresa chocolateira, Mars Inc, que subsidiou parcialmente a reunião Anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, onde o estudo foi apresentado.
Dizia o estudo que observações efectuadas por cientistas da Universidade de Harvard aos índios Kuna, no Panamá, permitiram concluir que o consumo de bebidas de chocolate faz bem ao cérebro por causa dos flavonóides. Esta substância antioxidante, presente no cacau e, também, no vinho tinto e no chá verde, favorece a circulação sanguínea cerebral, estimulando as funções mentais.
O chocolate, concluíram ainda os cientistas secundados mais tarde por colegas da Universidade de Nottingham, é também um forte aliado para evitar a hipertensão arterial.
No início deste mês, foi a vez dos suíços. Uma empresa do país do chocolate anunciou ter fabricado uma tablete que, consumida diariamente, ajuda a acabar com as rugas, graças às propriedades antioxidantes do cacau. O Actioa, assim se chama o chocolate da Barry Callebaut, ajuda a acabar com as rugas e retarda o envelhecimento da pele. Bastam 20 gramas por dia.
Notícias como estas podem pôr em causa a mística do chocolate. A do fruto que, por ser proibido, é apetecido.
Laura Esquivel retrata bem esta tensão no seu best seller «Como água para chocolate», que o realizador mexicano Alfredo Arau adaptou para o cinema, em 1993.
No livro, a autora retrata um amor proibido no México provinciano do século XX, no seio de uma sociedade convencional, preconceituosa e machista.
Tita ama Pedro, Pedro ama Tita, mas os dois são impedidos de viver o seu amor por causa de uma tradição que condena a filha mais jovem de uma família de homens ao celibato para que possa cuidar da mãe até à morte.
Para permanecer perto da sua amada, Pedro casa com outra mulher e Tita vai extravasando o amor que sente com as receitas saborosas que confecciona e que exacerbam a emoção e a libido de ambos. Uma meta-linguagem que tem como ingrediente essencial o chocolate.
"Houve um estranho fenómeno de alquimia não só no sangue de Tita, mas todo o seu ser havia se dissolvido no molho das codornizes, nos aromas da comida e penetrava no corpo de Pedro de forma voluptuosa, calorosa e sensual. Parecia que havia uma comunicação em que Tita era a emissora, Pedro o receptor e Gertrudis a afortunada que sintetizava esta relação sexual através da comida."
Se Laura Esquivel situou o chocolate no plano dos sentidos, Álvaro de Campos (um dos heterónimos de Fernando Pessoa), elevou-o à dimensão metafísica.
“Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.”
Apesar de os médicos continuarem a aconselhar moderação, desviando o olhar para os malefícios do chocolate, apetrecho-me e revisito «A Tabacaria» de Fernando Pessoa.

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