Na terça-feira em conversa, on-line, com um amigo jornalista ele contou-me uma história que viveu com José Saramago.
O escritor falecido há uma semana tinha ido a Viseu lançar um dos seus livros, numa iniciativa organizada pelo Sindicato dos Professores da Região Centro, no final da década de 90.
Após uma conversa com jornalistas, Saramago manifestou intenção de visitar a cidade no interior de Portugal.
Alguns jornalistas seguiram-no.
Quando chegaram ao Hotel Avenida, o meu amigo interpelou Saramago:
“Sou aquele jornalista que estava ali…”
“Eu sei, já vi. O que quer? Diga”, respondeu o escritor.
“A «Jangada de Pedra» é uma coisa para a gente se separar de quê?”, perguntou o meu amigo, usando comigo uma informalidade na linguagem que não empregou no diálogo com Saramago.
“Da filha da putice”, retribuiu Saramago.
Não satisfeito, o meu amigo fez-lhe outra pergunta e, às tantas, no meio da resposta, atirou: “O senhor fala, mas não está a olhar para mim”.
“Eu estou a olhar para si, mas você é que não me vê”, retorquiu o escritor.
“Fiquei lixado, mas era verdade”, lembrou José Guilherme Lorena.
Fiquei arrepiada.
Numa pequena história que o meu amigo contou tive a síntese da relação de Saramago com o seu país.
Portugal nunca viu José Saramago.
Olhou para ele algumas vezes, mas nunca o viu.
Viu o comunista.
Não viu o homem.
Viu o director do Diário de Notícias, a quem acusam de ter feito saneamentos numa versão que tem mais de ficção do que de verdade.
Viu o «Evangelho segundo Jesus Cristo» para impedir a sua projecção internacional porque chocava com a versão imaculada da igreja Católica.
Não viu que Saramago - como escreveu Vasco Graça Moura - um escritor “racionalista, ateu e empenhado socialmente por via do comunismo, tinha de questionar o Deus da Bíblia e de fazer uma leitura crítica dos seus atributos”.
Não viu que as investidas de Saramago contra Deus – continua o escritor Vasco Graça Moura – “supõem, quase de certeza, uma contrapartida de aumento do coeficiente de humanidade e de justiça que ele quereria ver instaurado e praticado entre os homens”.
Viu, mal, o casamento de Saramago com uma espanhola Pilar del Rio, porque “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento”.
Viu a mudança de Saramago para a ilha espanhola de Lanzarote como uma ofensa a Portugal.
Não viu que Saramago tinha uma “relação de afectos com os espanhóis” pela forma como o tratavam e continuou a “amar” Portugal, mas “deixou de idealizá-lo” pelo rumo que o país tomou.
Viu o Nobel da Literatura ser atribuído a um autor português, que por acaso - pensavam eles - era José Saramago.
Viu polémicas e vontade de provocar sempre que o escritor e o cidadão Saramago criticaram algo que ia contra o pensamento dominante.
Não viu que Saramago, como recordou o escritor Baptista-Bastos, “nunca deixou de exercer o acordo ético e ideológico que implica o despique e que recusa qualquer tipo de “arbitragem”. Sobretudo, nunca emudeceu quando as vozes de muitos outros se cumpliciavam com a cobardia”.
Não viu que Saramago - acrescenta Baptista-Bastos - esteve sempre onde a consciência o determinava”, “escolheu a instabilidade, as ameaças e os riscos” e “é um dos maiores escritores portugueses de sempre”.
E viu a morte, essa que tudo afasta e que permite que tudo se esqueça.
Ou quase tudo, porque até na morte houve quem teimasse em não ver Saramago.
Cavaco Silva.
O Presidente da República português não viu que como cidadão tinha o direito de gozar, sem interrupções as mini-férias com os seus netinhos, nos Açores, mas como Chefe de Estado do país que viu nascer Saramago tinha a obrigação de estar presente na despedida do único Nobel da Literatura da língua que fala.
Mas isso pode ser que os portugueses tenham tido a oportunidade de ver, para que a cegueira se fique pelo ensaio de Saramago e Portugal se possa Levantar do Chão, sem que para isso dependa do futebol e das vitórias da selecção.
Muito bom, belo artigo. Como é que ainda me consigo surpreender a ler-te!!!
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