sexta-feira, 11 de março de 2011

Choque de Ordem (crónica publicada no Novo Jornal)

A tolerância zero foi decretada, mas não se revelou suficiente para desmobilizar os adeptos do chichi ao ar livre no Rio de Janeiro.

Mais de 600 foliões foram detidos, ao abrigo da operação «Choque de Ordem» lançada pela Secretaria Especial da Ordem Pública, o dobro das detenções efectuadas no carnaval de 2010, o que estimula as autoridades brasileiras a prosseguirem o ataque à urina nos lugares públicos.
O secretário de Conservação e Serviços Públicos, Carlos Roberto, estuda a possibilidade do aumento de sanitários – foram espalhados mais de 13 mil pela cidade - para o próximo ano, anulando assim o argumento dos foliões admoestados, que se queixaram da falta de banheiros e do excesso de filas.
O Rio de Janeiro está a levar muito a sério a operação anti-chichi e “não vai dar tréguas aos mijões”. Em causa estão os bens públicos da cidade por causa dos componentes da urina que não são tão inócuos como parecem. O cloreto de sódio presente no mijo provoca a criptoflorescência. Trocando por miúdos, a urina contém água, ureia e sulfatos e exala amoníaco, que é altamente corrosivo e solúvel na água, deteriorando os materiais de construção.
O poder da urina ficou a nu, em 2001, quando a bancada do estádio da Fonte Nova, em Salvador da Baía, cedeu, provocando a morte a sete pessoas e ferimentos em 30. Os testes feitos pela equipa de investigação concluíram que o cimento e as vigas de aço da estrutura cederam, corroídos pela urina que se foi acumulando no local. Os adeptos quando viam os jogos urinavam mesmo sem sair do local.
A conclusão do relatório pôs as autoridades brasileiras em alerta, temendo pelas suas catedrais, basílicas, monumentos e viadutos. O pico é atingido no carnaval, altura em que milhões de foliões cedem à tentação e aliviam a bexiga da pressão do chop (cerveja) em qualquer lugar.
Esta coisa de fazer chichi na rua não é pacífica e tem muito que se lhe diga.
Imune à fúria proibicionista, um juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu, em Novembro de 2010, suspender uma acção penal contra um jovem que foi “flagrado” a urinar numa rua de Ipanema.
O rapaz foi acusado de praticar acto obsceno, mas o juiz concluiu não haver conotação sexual. De acordo com a sentença, só pode ser considerada obscena qualquer atitude que venha ofender o pudor e os bons costumes o que, no caso do acto de urinar na rua, não fica caracterizado.
O juiz não só absolveu o jovem como admoestou o poder público. Argumentou que se devia preocupar mais com as prostitutas e travestis que exibem as partes íntimas de seus corpos na via pública, “em flagrantes crimes de ato obsceno, sendo que tais condutas, infelizmente, e por razões que não se conhece, tem sido diariamente toleradas pelas autoridades do Choque de Ordem”.
Exemplos de vários pontos do globo provam que a temática não é assim tão linear.
Em Berlim, Alemanha, um jovem de 18 anos que parou para fazer chichi na rua acabou esfaqueado, em Dezembro de 2010. Pensando tratar-se de um exibicionista, um cidadão espetou-lhe uma faca na nádega e o jovem lá foi socorrido com a navalha espetada na bunda.
Na cidade de Nottingham, Inglaterra, os moradores foram surpreendidos, no início de 2009, com placas a informar que se pode urinar em locais públicos… mas só a partir das 19h30. A autarquia local tratou logo de demarcar-se da iniciativa e pediu aos moradores para ignorarem os avisos. Tratava de uma brincadeira. Desconhece-se o efeito da advertência. As placas, essas, foram removidas.
Em Salvador da Baía, as campanhas da TV Globo contra o “hábito vergonhoso dos baianos” de urinar na rua, que é responsável pela corrosão das estruturas dos viadutos de Salvador, suscitaram reacções inflamadas. O bloguista Jary Cardoso tratou de desmontar a tese corrosiva, desviando o ónus para as autoridades públicas que não fazem a devida limpeza e manutenção das estruturas, rematando o seu artigo com um episódio que envolveu uma visita do poeta pernambucano Ascenso Ferreira, à Baía, entre 1959 e 1960.
“Na véspera do seu retorno ao Recife, providenciou-se o encontro dele com jornalistas para uma entrevista coletiva e despedida de Salvador. Foi quando um dos jornalistas lhe perguntou:
– Depois de um mês de estada em Salvador, o que mais lhe impressionou na cidade?
O poeta respondeu com precisão:
– A liberdade de mijar!”.
Pelo sim e pelo não, convém ter em conta um estudo da Universidade de Twente, na Holanda, que conclui que controlar a vontade de urinar pode melhorar as decisões tomadas por uma pessoa.
Aguentar até surgir um urinol público é, à partida, uma boa decisão.

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