sexta-feira, 28 de maio de 2010

Abusos de poder (crónica publicada no Novo Jornal)

Um administrador distrital de Moçambique foi destituído por ter dado ordem de prisão a um homem, que foi julgado e condenado, só por ter criticado a sua prestação enquanto governante.
O caso embaraçou os órgãos do Estado moçambicano e obrigou a Procuradoria-Geral da República a pedir ao Tribunal Supremo a anulação da sentença.
Ao governo não restou outra alternativa que não a exoneração do administrador do distrito de Muecate, em Nampula, enquanto o mecânico de bicicletas viu a sentença ser-lhe anulada e a vida voltar à normalidade.
O primeiro-ministro de Itália, Silvio Berlusconi, recorreu a fundos destinados à Protecção Civil para pagar a regata Louis Vuitton, que se realiza na costa da Madalena, orçada em quatro milhões de euros: 3.750 pagos pelo Estado e 250 mil euros financiados pela administração da Sardenha.
A decisão de Berlusconi não passou no crivo do Tribunal de Contas que impediu o recurso ao fundo, alegando que “uma regata não é uma catástrofe natural”.
Sem meias medidas, o primeiro-ministro italiano resolveu então utilizar os fundos destinados à recuperação e reactivação da zona mais degradada da Marselha, provenientes na maioria da União Europeia.
O diário La Repubblica denunciou o desvio; a oposição criticou a opção, tendo em conta a situação de crise que afecta a Itália; a União Europeia mantém-se em silêncio; e Silvio Berluconi assobia para o lado.
O que é que estes dois casos têm em comum? Em rigor muito pouco, a não ser o facto de ambos revelarem a apetência para o abuso do poder, esquecendo-se os dois protagonistas que os titulares de cargos públicos são servidores dos interesses públicos e não são servidores dos seus próprios interesses.
E quais as diferenças entre ambas as histórias? São inúmeras.
No primeiro caso, ocorrido num país africano, os órgãos de soberania – Procuradoria-Geral da República e Governo – sancionaram o abuso de poder e reverteram a acção por ele projectado.
No segundo caso, que teve lugar num Estado europeu, manteve-se o abuso de poder, sem que os órgãos de soberania hierarquicamente acima o tenham impedido e sancionado.
No episódio de Moçambique, há pesos e contrapesos – para utilizar um jargão do direito constitucional – que impedem o abuso de poder.
No segundo, esvaziam-se cada vez mais os mecanismos que equilibram os diferentes poderes do Estado, o que compromete a saúde da democracia italiana, como advertiu em Novembro de 2009 Ezio Mauro, director do jornal La Repubblica, numa entrevista a propósito da reforma da Justiça.
“Somos uma democracia que perde em qualidade todos os dias. Isto devia preocupar os italianos e devia preocupar a Europa”, afirmou Ezio Mauro.
Ao estabelecer seis anos como prazo máximo para um processo, incluindo apelos, o acordo a que chegaram o primeiro-ministro italiano e o seu aliado no governo Gianfranco Fini (líder da Aliança Nacional) mais não é, segundo o director do La Repubblica, do que uma “pretensa reforma para mascarar uma operação destinada a evitar que Berlusconi seja julgado” por “crimes muito graves e que, segundo a acusação, foram cometidos antes de se lançar na política, quando era empresário”.
Como se não bastasse, o primeiro-ministro italiano tenta agora fazer passar uma lei que limita o recurso às escutas e a sua publicação.
A “lei da mordaça”, como lhe chamaram, fez soar campainhas e a imprensa, jornais próximos do governo incluídos, uniu-se para “denunciar o perigo” que o diploma representa “para uma informação completa e livre”.
Mais contundente, o jurista Stefano Rodotà, alerta que esta lei põe o país “à beira da ditadura”: “Para definir o que está a acontecer em Itália é preciso falar de crise institucional, censura, regime, violação da Constituição. Muitos põem uma venda nos olhos. Entre mordaça e venda, não sei o que é pior. Esta lei é o centro da estratégia autoritária de Berlusconi. Quer uma opinião pública desinformada, carne para sondagens”.
Mas afinal de contas como é que chegou a este estado numa democracia europeia?
A resposta é dada pelo director do La Repubblica: “Somos o único país do mundo em que a pessoas mais rica e a pessoa mais poderosa coincidem. É uma anomalia que ele (Berlusconi) continue a ser um empresário, que mantenha todos estes interesses económicos, industriais, editoriais, que controle seis redes televisivas, e que tenha jornais da sua família com os quais ataca os seus adversários políticos e jornalísticos”.
Um quadro “anómalo” que pode começar a mudar. Maria Luisa Busi, um dos principais pivots italianos deixou de apresentar o jornal da noite da televisão pública (RAI 1) por considerar que a linha editorial do bloco é muito simpática para o primeiro-ministro. O desfecho de um braço de ferro com o editor do jornal, Augusto Minzolini, escolhido para o cargo por Berlusconi, que colocou do lado da jornalista o presidente da estação.
Pode ser que o seu exemplo ramifique para que em Itália os abusos de poder sejam sancionados como acontece em Moçambique. A bem da democracia.

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