quarta-feira, 19 de maio de 2010

Reportagens Sebastião Vemba II



















Esta é a segunda reportagem publicada sobre o desalojamento dos moradores do bairro Benfica e foi feita uma semana depois, já no Zango, para onde as famílias foram transferidas.

Ilhéus no Zango

Vidas ao relento

Sebastião Vemba

Chove no Zango. Desde que aqui chegaram os moradores do bairro Benfica, na semana passada, já três chuvas torrenciais caíram. E quando chove, a maior parte dos que já têm tendas abandonam-nas, completamente inundadas. Os que ainda não as têm não resta mais nada senão assistir ao banho que as águas da chuva dão aos seus parcos haveres, cobertos com sacos e lonas que não resistem à impetuosidade das águas.
É o caso de Edna Valdemira. Grávida, dorme ao relento desde que chegou ao Zango, no domingo dia 19 e não esconde a tristeza e descontentamento que lhe vão na alma. “Quando chove”, conta-nos, “escondo-me na tenda do vizinho”, uma das poucas que consegue resistir às chuvas. Ainda assim, diz, as suas “coisas apanham mesmo água.” Na primeira noite em que choveu, ficou encharcada dos pés à cabeça. “Dormi no colchão húmido e sem me cobrir, porque toda roupa molhou. Apanhei febres já estou a melhorar”, conta.
Já Sérgio António, um dos jovens alvejados durante os protestos da madrugada de sexta-feira (ver caixa), não tem a mesma sorte. “A minha tenda está numa zona baixa, por isso é que inunda sempre que chove”, esclarece, enquanto aponta para uma pequena vala que construiu para desviar o curso das águas.
Quem também ainda se encontra ao relento é Catarina Manuel, a viver no Zango “desde o dia 20, às 4:35”, como contou. Aos 45 anos de idade, mãe de quatro filhos, Catarina protesta contra os métodos como as tendas estão a ser distribuídas e apela às autoridades a atenderem a população para que se evitem mais incidentes. “Estamos aqui há mais de uma semana, mas quem recebe tenda são os últimos a chegar. É bom que evitem isso porque as pessoas estão muito aborrecidas”, alerta, e conta a desilusão que teve ao saber que a escola onde estudavam os filhos foi também demolida. “Eu deixei os meus filhos na casa de uns amigos para eles poderem ir às aulas, mas infelizmente a escola também foi afectada”, lamentou, apontando para uma conjunto de carteiras cobertas por lona azul claro. “As carteiras são aquelas”, disse, resignada.
Aproveitando a presença da reportagem do NJ no local, atentamente seguida pelos polícias armados que rondavam a zona, Maria Isabel apresentou-se e pormenorizadamente contou-nos sobre a sua chega. Para esta mãe de seis filhos, onde viviam em companhia de um sobrinho, nada mais importa senão uma tenda igual a que os outros já receberam. “As mobílias todas estão a estragar aqui fora com a chuva”, lamenta e questiona-se: “se na ilha eles fizeram uma relação nominal e enumeram as casas e número de pessoas por família, onde é que andam estas listas?”
“Pelo que se sabe, todas elas desapareceram”, lançou um outro morador. Segundo o mesmo, a cada dia que passa faz-se uma lista nova, mas no dia seguinte faz-se logo outra. “Há muito cambalacho por aqui”, protesta. “Estamos a ser abandalhados”, acrescenta Maria, que se levanta às cinco da manhã para tomar banho, uma vez que a maioria das casas de banho existentes no local estão entupidas, o que cria filas enormes nas que ainda são utilizáveis.

Beber para esquecer as “malambas”
As tendas espalhadas pelo vasto descampado dão ao Zango a imagem de um acampamento. As pessoas, muitas delas conformadas, outras silenciosas, e outras ainda silenciadas, passam o dia à porta das tendas esperando por uma novidade. Sentado em cadeiras brancas de plástico a beber, um grupo de jovem lançou: “Já não temos mais nada a fazer senão beber com força. Vamos fazer como se não temos nem trabalho nem escola para nos ocupar?”.
De repente surgiu uma carrinha de marca DINA, de onde descem homens transportando sacos de feijão, arroz, fuba de milho e caixas de óleo vegetal. “Estão a nos improvisar com feijão que não coze”, murmurou Edna Valdemira, de quem soubemos que a cada família era distribuído um quilo de arroz e um de feijão. O litro de óleo era repartido por duas famílias.


------------------------------------------
AJPD
Manifestação resultou da falta de condições

O presidente em exercício da Associação Justiça, Paz e Democracia, Serra Bango, considera que os protestos que se registaram na madrugada do dia 24 no Zango resultaram apenas da falta de condições mínimas de habitabilidade em que as populações retiradas do Benfica foram postas.
Para o activista de direitos humanos, quaisquer motivos que estejam na base do desalojamento da população da Ilha não retiram ao Estado angolano o dever de criar condições de habitabilidade na zona de alojamento. “As que tinham casas de construção definitiva devem ter casas iguais às que tinham ou uma compensação semelhante, ou ainda serem criados meios para que elas por si só construam as suas próprias casas, ao passo que as que tinham casas em baixas condições, devia-se oferecer as condições mínimas”.
A ausência de condições como água, energia e atendimento médico, para Serra Bango, são por si motivo de descontentamento para as pessoas, pelo que “não foi feliz no seu depoimento quem disse que houve aproveitamento político dessa situação”, disse Bango, que sublinhou a necessidade de se resolver os problemas da população que ainda dorme ao relento, “em vez de se fazer jogadas políticas”. Uma alusão à visita que Isaías Samakuva fez ao Zango, apelidada por alguns sectores como uma manobra de agitação política. Também um grupo do MPLA de Luanda, liderado por Fragata de Morais, deslocou-se ao local para se insurgir contra a vandalização do comité de acção do partido no Zango, durante o levantamento de sexta-feira passada.
Por fim, Bango considerou haver em jogo muitos interesses particulares quando se trata de demolições e desalojamento. Questionado para ser mais específico, Serra Bango disse: “Temos assistido ao surgimento, na cidade de Luanda, de muitas obras privadas, sem o mínimo interesse público, a cargo de empresas com projectos arquitectónicos muito ambiciosos e que procuram zonas com uma vista agradável, como é caso da Ilha de Luanda que tem um característica paradisíaca”, disse, sublinhando que o tráfico de influência é um expediente muito usado nestas circunstâncias.

---------------------------------------------
Polícia alveja moradores

Sérgio António Oguise, Gino para os mais próximos, foi alvejado com um tiro certeiro na coxa directa. Tudo aconteceu quando um grupo de jovens, agastado com as condições de habitabilidade a que foram submetidos no Zango, revoltou-se contra a polícia que, segundo disseram, comercializavam tendas, enquanto dezenas de famílias dormiam ao relento.
Para afugentar os manifestantes, as autoridades disparavam ao ar, mas os protestantes lançavam garrafas e pedras às instalações policiais. Os manifestantes renderam-se às autoridades depois desta imprimir métodos mais contundentes, sendo doze deles presos.
No entanto, outro grupo de jovens, do qual Gino fazia parte, reuniu-se para ir à Rádio Comercial Despertar a fim de relatar o sucedido.
“Eles disseram que não iríamos a lugar nenhum ou nos matavam a todos”, conta-nos a vítima, barman de profissão, que, junto de mais um companheiro, escondeu-se no capim depois de surgirem os primeiros tiros.
Quando pensavam que as autoridades já haviam aberto a passagem, os dois jovens levantaram-se para seguir rumo à rádio, mas foram assombrados com um tiro cada.
“O tiro foi mesmo intencional. Primeiro faziam tiro ao ar, mas depois atiraram-me à coxa”, conta, enquanto se queixa das dores. No entanto, para sua sorte, o fémur não foi afectado e Gino voltará a andar normalmente. O seu companheiro, também atingido na perna, por falta de condições para custear os curativos no Hospital de Viana, foi transferido para um hospital algures na Ilha de Luanda, onde se encontram os familiares.
Até ao fecho da edição não foi possível falar com os responsáveis da Polícia Nacional. Tentou-se também, repetidamente, o contacto com David Mendes, defensor dos 12 jovens pela PN, sem sucesso.

Sem comentários:

Enviar um comentário