quarta-feira, 19 de maio de 2010

Reportagens Sebastião Vemba III

Esta é a terceira e última reportagem sobre o desalojamento dos moradores do bairro Benfica, onde se confirma a inquietação do repórter. Sebastião Vemba não se limitou a escrever sobre a notícia do desalojamento, seguiu o rasto da história e dos moradores. Uma lição de jornalismo que sublinha como é importante em reportagem o jornalista entrar na história e não se limitar ao papel de observador.
Sugiro que comecem a ler as reportagens por ordem numérica, para se perceber cronologicamente os factos.

Histórias do Zango
E o tempo passou, mas nada mudou

No saldo da mudança das famílias do Benfica, na Ilha de Luanda, para o Zango pesam as perdas. Perderam o mar, a energia eléctrica, a proximidade às fontes de rendimento, a comunidade e o brilho no sorriso. Na nova vida o tempo passa, mas devagar e em silêncio. O silêncio da revolta abafada.

Sebastião Vemba

O roncar do motor do jipe que circula lentamente por entre as tendas desperta a atenção dos moradores do Zango I que se escondem do sol abrasador do meio-dia.
À entrada das suas tendas empoeiradas e esbranquiçadas, as pessoas acompanham com os olhos o deslizar do carro que as deixa para trás e espalham nos rostos, uns amarfanhados e outros esboçando um sorriso pouco brilhante, a grande sede de falar sobre os seus problemas.
“Já nos esqueceram papá”, desabafa dona Amélia satisfeita por alguém se importar consigo, mas triste devido à situação em que se encontra. Segundo conta, nada melhorou senão o facto de as crianças serem enquadradas em diversas escolas do bairro. As suas duas filhas, Zizi Suraia e Paulina, voltaram às aulas no dia 2 de Junho, depois de terem ficado em casa mais de um mês.
A escola que frequentavam na Ilha também foi demolida. No Zango, as crianças vindas do Benfica assistem às aulas em tendas instaladas dentro do quintal de uma escola primária e outras ainda foram integradas no Instituto Politécnico Eng.º José Eduardo dos Santos, que funciona como escola do ensino básico.
Enquanto não eram integradas, Zizi e Florinda passavam os dias a brincar, procurando descobrir todos os atractivos do novo bairro. Diferentemente da Ilha de Luanda, onde tinham luz eléctrica, aqui no Zango já não vêem os desenhos animados com que se acostumaram devido à falta deste bem. No entanto, os que conseguiram preservar os geradores dos estragos provocados pela mudança usam-nos para se distrair.
Mário, chefe de uma família de cinco membros, reclama os gastos que actualmente faz para manter o seu gerador ligado durante o maior número de horas possíveis.
“As crianças têm de se divertir, e mesmo nós mais velhos precisamos de espairecer senão morremos de tanto pensar”, justifica o homem que semanalmente gasta, no mínimo, quarenta litros de gasolina, o que em dinheiro dá cerca de 2.500 KZ.
Florindo Mateus, estudante da 5.ª classe, foi um dos integrados nesta instituição de ensino e conta que não fez os exames trimestrais. “O professor disse-nos que não precisamos mais de os fazer. Podemos continuar e só vão contar as notas do II trimestre”, narra o pequeno Florindo, de 13 anos, que na Ilha do Cabo estudava na Escola 3006.
Dona Amélia continua a lamentar, assistida pelas filhas mais crescidas e as vizinhas que se prostraram à volta de si e do seu interlocutor e que, de quando em quando, se intrometiam na conversa. “Água sempre houve desde que chegámos aqui, mas apenas para lavar e banhar. Água para beber acarretamos nessas casas antigas”, disse uma das filhas de dona Amélia que lamentou a ausência de casas de banho. “Banhar aqui é só à noite. Para fazer outras necessidades temos de ir às lavras”, seguiu-se-lhe a mãe, que contou de um jovem que foi picado por uma cobra enquanto se banhava.
Os balneários móveis do bairro constituído por tendas e algumas construções de chapa que vão surgindo encontram-se deitados de forma horizontal, enquanto que os fixos foram encerrados porque todos entupiram devido ao número excessivo de usuários.


Não chorar o leite derramado
Já passa mais de um mês desde que os ilhéus do bairro do Benfica foram transferidos para o Zango. Os primeiros dias foram de muita agitação e frustração à mistura. Salvador Oliveira, funcionário num restaurante da Ilha de Luanda, conta que ao regressar do serviço sentia um mal-estar sempre que estava junto à casa.
“Eu no serviço sou outra pessoa, mas quando chego à vila para apanhar o táxi que me deixa em casa sinto-me muito mal. Frustrado e humilhado ao mesmo tempo”, conta à nossa reportagem o jovem, durante uma viagem de comboio.
Salvador trabalha por turnos e quando não faz noite desloca-se para o Cassenda, na casa dos pais, onde passa a noite e no dia seguinte, logo pela manhã, ruma para o seu local de serviço. “Já tentei algumas vezes sair de Viana às 4h00 da manhã, mas não consigo porque é muito cansativo”, justifica-se enquanto recorda os tempos de morador da Ilha e toma consciência dos gastos que agora é obrigado a fazer.
Dodó, como também é chamado, já pensou em permanecer na casa dos pais até que as coisas no Zango se resolvam, mas acha arriscado fazê-lo, porque em Viana as situações mudam do dia para noite, com a agravante de nos últimos tempos se registarem roubos e incêndios.
Na altura em que a reportagem do Novo Jornal esteve no bairro, já cinco incêndios tinham sido registados, dois dos quais de origem desconhecida. Os outros, segundo os moradores, ocorreram enquanto as vítimas preparavam as refeições. Devido à proximidade entre as tendas, no último incêndio, registado no dia 5, sexta-feira, mais outras tendas arderam.
“Ficámos muito assustados. Se não tomarmos as devidas precauções o bairro todo pode queimar em fracções de segundos”, alerta o jovem.
No entanto, ainda há quem insista em sair do bairro, à procura de um asilo mais cómodo, enquanto outros entediados de nada fazer rumam para a zona baixa da cidade à procura de biscates. Sérgio, jovem alvejado na coxa durante os tumultos entre a polícia e a população, perdeu o emprego. Segundo conta, os ferimentos não curavam passava já um mês e a entidade empregadora contratou outro funcionário. “Passo uma semana na Ilha, mas depois de conseguir algum dinheiro subo aqui ao Zango”, conta.
Enquanto Sérgio fica na Ilha de Luanda, em casa de um tio, a irmã mais velha cuida da sua tenda a irmã, mas ainda assim o jovem reconhece os riscos: “É muito fácil os ladrões levarem o que desejam, basta rasgar as tendas e retirar o que lhes interessa”.
Kina, sentada à porta da sua tenda com a filha de apenas uma semana de vida, reforça as lamentações de Sérgio e conta de sua botija de gás butano roubada com o mesmo truque dos ladrões. “Se não te rasgam a tenda, eles entram levantando o tapete”, reforça.
Por sua vez, os antigos moradores do Zango I, transferidos em 2002 da Boavista para este bairro, mostram-se descontentes com o aumento de roubos no bairro.
“Eles trouxeram os seus maus hábitos da Ilha ao Zango”, acusa uma antiga moradora, que lamenta a fraca intervenção da polícia cujas instalações se encontram no bairro. O NJ procurou saber das autoridades policiais o estado da criminalidade no bairro, mas não obteve nenhuma resposta devido à ausência do comandante.
Ao passo que Sérgio e outros companheiros deixam o bairro à procura de biscates, Sabino Rufino, vendedor de discos de música e artigos de beleza feminina, montou a sua bancada na parte traseira da tenda, de onde consegue o seu o sustento.
O comerciante viveu seis anos no bairro do Benfica, numa casa de chapa, e faz esse negócio há já três anos. Actualmente, segundo conta, o negócio deixou de ser rentável como foi na Ilha, mas acredita que dentro de poucos tempos os seus vizinhos se aperceberão dos seus serviços.
“As pessoas ainda vão procurar estes serviços distante do bairro, mas depois vão dar conta que mesmo aqui dentro temos o que elas precisavam”, disse confiante Rufino que abandonou as aulas devido à mudança de bairro. “Volto a estudar no próximo, agora estou sem cabeça”.
Tal como Rufino, moradores que no Benfica se dedicavam ao comércio instalaram as bancadas junto às tendas e outros, mais criativos, construíram cantinas com chapas de zinco.
“A minha vida sempre foi isso”, começa a narrar Domingos Chimene, que diz nada ter a reclamar sobre a perda da clientela que aumentou muito devido ao facto de as pessoas passarem mais tempo em casa do que fora e recorrerem à bebida e outros atractivos para verem as horas passar mais depressa. Reunidas à sombra de tendas abertas, os moradores bebem e conversam sobre quaisquer outros assuntos que não sejam o problema que já vivem. “Nós já sabemos que se esqueceram de nós e apenas fingimos estar conformados com isso, mas estamos apenas calados”, protestou Domingos.

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Governadora reconhece falhas, mas considera dificuldades ultrapassadas

Enquanto os moradores do extinto bairro Benfica da Ilha de Luanda se queixam de abandono por parte das autoridades governamentais, a governadora de Luanda, Francisca do Espírito Santo, reconheceu “algumas falhas”, durante todo o processo de realojamento dos ilhéus no bairro do Zango, e garantiu que a situação está já ultrapassada.
Para Francisca do Espírito Santo, a atitude do seu governo foi em socorro da população que actualmente se encontra a viver no Zango I há já dois meses, uma vez que esta vivia em condições de “extrema precariedade, sem quaisquer infra-estruturas básicas”. Para a governante, esta realidade era propícia a um “modo de vida muito promíscua, onde proliferava a delinquência e o consumo de drogas”.
Por outro lado, a governadora de Luanda recusou a afirmação segundo a qual terão sido demolidas muitas casas de construção definitiva, pois segundo os dados do seu governo o balanço das operações aponta para “um número insignificante de três casos em que os cidadãos haviam dado início a construção de alguns quartos em blocos de cimento fora das normas governamentais”.
De recordar que um ex-morador do Benfica, discordando da posição da administrador da Ingombota, Susana de Melo, que afirmava haver apenas casebres de chapas e que ninguém tinha sido obrigado a se retirar de casa com os seus haveres, exibiu aos jornalistas presentes na apresentação do projecto de requalificação da Ilha um filme de cerca de 5 minutos onde apareciam dezenas de casas de construção definitiva a serem demolidas.
Neste filme, segundo constatou o N.J., aparecem casas onde tinham sido instalados aparelhos de ar condicionado e antenas parabólicas.





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