sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Ar, apenas (crónica publicada no Novo Jornal)

O Prémio Camões de 2010, o poeta brasileiro Ferreira Gullar, não gosta de Lula da Silva. Diz que o actual Presidente do Brasil é uma figura “inacreditável”, que “não entende nada, é inteligente e esperto” e “só pensa em votos e popularidade” não indo “a fundo nas questões do país”.

O governo de Lula da Silva criou em 2003 o Programa Bolsa Família, que fundiu num só três pacotes de ajuda criados no governo de Fernando Henrique Cardoso, e que é considerado um dos principais programas de combate à pobreza do mundo. A revista britânica The Economist diz que é “um esquema anti-pobreza” que ganha adeptos em todo o mundo. O jornal francês «Le Monde» escreveu que “amplia, sobretudo, o acesso à educação, a qual representa a maior arma, no Brasil ou em qualquer lugar do planeta contra a pobreza”.
O escritor Ferreira Gullar, pseudónimo de José Ribamar Ferreira, diz que Lula da Silva “é o resultado lamentável de uma série de equívocos criados em função da própria luta contra a ditadura, uma esquerda derrotada na guerrilha que se juntou com a Igreja Católica de esquerda revolucionária e com um líder sindical que não tinha nada na cabeça”.
Lula da Silva, forma hipocorística de Luís, foi sindicalista; co-fundou o Partido dos Trabalhadores; foi o brasileiro que mais vezes se candidatou à Presidência do Brasil (cinco); foi eleito Presidente em 2002 e renovou o mandato em 2006; catapultou o Brasil no panorama político mundial; em 2009 foi considerado o «Homem do ano» pelos jornais «Le Monde» e «El Pais»; o Financial Times elegeu-o uma das 50 pessoas que moldaram a década pelo seu “charme e habilidade política” e “por ser o líder mais popular da história do país”; o Fórum Económico Mundial de 2010, em Davos, Suiça, atribuiu-lhe o prémio inédito de «Estadista Global» pela sua actuação no meio ambiente, erradicação da pobreza, redistribuição da renda e acções com a finalidade de melhorar a condição mundial; o jornal israelita «Haaretz» afirmou, em Março de 2010, que Lula é o “profeta do diálogo” pela sua intermediação na busca da paz no Médio Oriente; a Time elegeu-o o líder mais influente do mundo em Abril de 2010; o seu nome está indicado como candidato a prémio Nobel da Paz em 2011…
O poeta Ferreira Gullar, escreveu um dia: “A estrela mente/o mar sofisma. De fato,/o homem está preso à vida e precisa viver/o homem tem fome/e precisa comer/o homem tem filhos/e precisa criá-los/Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las”. Hoje critica a Bolsa Família. Diz o também crítico de arte e biógrafo que há municípios no Brasil que vivem do programa e “ninguém trabalha” e que o Brasil “vai passar a sustentar milhões de pessoas que não trabalham e vivem de um dinheiro muito reduzido”.
A ONU tem recomendado que outros países em desenvolvimento adoptem o programa Bolsa Família; a Organização Internacional do Trabalho considera que se trata de “uma importante medida anticíclica que promove benefícios para a economia como um todo, ao fomentar a demanda de alimentos e produtos de primeira necessidade; pesquisas do Banco Mundial indicam que houve uma significativa redução da exploração do trabalho infantil entre as crianças beneficiadas pelo programa; um técnico que acompanha o Bolsa Família criado em Nova Iorque com base no modelo brasileiro concluiu que o benefício não desestimula o trabalho e a ascensão social. Pelo contrário, às vezes os adultos trabalham mais porque têm essa garantia de renda básica que permite assumir mais riscos nas suas ocupações; estudos no Brasil confirmam a tese de que a Bolsa Família “é um investimento social”. Desde a criação do programa em 2004, 60.165 famílias pediram voluntariamente o seu desligamento; uma análise da Fundação Getúlio Vargas constata que, devido à obrigatoriedade de porem os filhos a estudar, hoje apenas 2,5% das crianças dos sete aos 14 anos estão fora da escola, quando no início dos anos 90 eram 15%; conclui que o brasileiro “começa a ser mais formiga que cigarra”; e que o aumento da renda familiar permitiu o ingresso de maior número de mulheres no mercado de trabalho.
O também tradutor, memorialista e ensaísta Ferreira Gullar diz que o todo o discurso do homem que tirou da pobreza 20 milhões de brasileiros e alavancou outros 32 milhões para degraus superiores da escala social “é de propaganda” e que Lula da Silva “nunca fez um pronunciamento de estadista”.
Certamente Ferreira Gullar não leu o que escreveu Eça de Queiróz, em 1867, em «O destino de Évora»: “Ordinariamente todos os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade, nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o Estadista”.
Se tivesse lido não teria dito o que disse de Lula. Ou então não contradiria na vida o seu próprio discurso poético, a menos que se leve à letra o que escreveu no poema «Traduzir-se»: “Uma parte de mim/ pesa, pondera:/ outra parte/se espanta (…) Uma parte de mim/é só vertigem:/outra parte,/linguagem”.
A não ser que, também parafraseando Ferreira Gullar: “Todo o poema é feito de ar/apenas”. E aí não há razão bastante que justifique a atribuição do Prémio Camões.

1 comentário:

  1. Pois é. O rei(prémio Camões, Gullar) vai despido pela ruas da Tijuca.
    Joana

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