sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A fábula da capoeira (crónica publicada no Novo Jornal)

Uma capoeira, com centenas de galinhas e alguns galos, possantes, altivos.
Um incêndio no celeiro. Do fogo salva-se uma parcela de comida. Escassa para tantas cabeças.
Os galos, em reunião restrita, decidem que algumas das aves têm de ser enxotadas da capoeira, porque a comida não chega para todos.
Abrem a cancela e fazem sair um quarto dos bichos, os mais fracos e que oferecem menor resistência à expulsão.
De fora da cerca, as galinhas só têm pedrinhas. Tentam debicar algum grão, através da rede, mas não lhe chegam. Sucumbem.
Os galos, mais nutridos, voltam a reunir e decidem expulsar outro quarto. O alimento escasseia, alegam. Enxotam os mais fracos que engrossam as fileiras dos que de fora agonizam.
Os que permanecem no interior, cada vez mais nutridos, engordam e aumentam de peso, atingindo medidas nunca conseguidas antes, enquanto as aves do lado de fora soçobram.
Esta fábula traduz a realidade que se vive e de que mal se fala. E o pouco que se comenta não tem o eco suficiente para que a opinião pública se aperceba de um dos maiores atentados à Humanidade que está a ser cometido. O desemprego e os cortes salariais, em massa, estão a ser usados como as novas armas do capitalismo.
“A partir do primeiro trimestre deste ano, os lucros das empresas dispararam entre 20 a mais de 100 por cento”, afirma James Petras, sociólogo da Universidade de Binghamton, Nova Iorque, com base em informações divulgadas pelo Financial Times, em Agosto de 2010. “Na realidade, os lucros das empresas subiram mais do que antes do início da recessão em 2008”, continua o articulista, baseando-se agora num artigo da «Money Morning», de Março de 2010. “O acréscimo dos lucros empresariais é consequência directa do agravamento das crises da classe trabalhadora, dos funcionários públicos e privados e das pequenas e médias empresas”.
“No início da recessão, o grande capital eliminou milhões de postos de trabalho (um em cada quatro americanos ficou desempregado em 2010)” e “quando a recessão bateu no fundo temporariamente, os grandes negócios duplicaram a produção com a restante mão-de-obra, intensificando a exploração (maior produção por trabalhador) e reduziram os custos passando para a classe trabalhadora uma fatia muito maior dos encargos”.
Embora “as receitas tenham diminuído, os lucros subiram e os balancetes melhoraram”.
Mas a actual explosão de lucros “não beneficiou todos os sectores do capitalismo (…) muitas pequenas e médias empresas registaram altas taxas de falências e de prejuízos, o que as tornou baratas e presa fácil para aquisição pelos “grandes patrões””, acrescenta Petras.
Tal como na rábula da capoeira.
O plano da Casa Branca para a “recuperação” – assente na transferência de milhares de milhões para o grande capital, através de operações de salvamento, empréstimos praticamente isentos de juros, cortes nos impostos” e pressão para que a força de trabalho aceitasse salários mais baixos e reduções na saúde e nas pensões - resultou “para lá de todas as expectativas: os lucros empresariais recuperaram”. Só a “grande maioria dos trabalhadores é que se afundou mais nas crises”.
Como as galinhas que foram enxotadas da capoeira para que os galos engordassem.
“O que o actual impacto desigual e injusto do sistema capitalista nos diz – assinala o sociólogo - é que o capitalismo consegue ultrapassar as crises aumentando apenas a exploração e anulando décadas de “ganhos sociais”. Mas o actual processo de recuperação de lucros é altamente precário porque (…) não se baseia em novos investimentos privados dinâmicos nem no aumento da capacidade produtiva (…) são “ganhos ocasionais” – não são lucros provenientes de receitas de vendas acrescidas nem de mercados de consumo em expansão”.
A análise de Petras encontra sustentação e reforço num estudo patrocinado pela Fundação Rockefeller, intitulado «Estabilidade Económica em risco», que revela que um em cada cinco americanos sofreu uma perda da renda familiar de 25% ou mais em 2009.
Ao mesmo tempo que as empresas engordam à custa do desemprego e cortes nos trabalhadores, as que tentam contrariar esta lógica são sancionadas. O Wall Street Journal revela que “os mercados financeiros estão a punir empresas que relatam planos de expansão e recompensam aquelas que não planeiam novas contratações ou que planeiam mais demissões”.
Tudo isto acontece com a aceitação complacente dos cidadãos que, intoxicados pelas notícias da crise, se deixam empurrar para fora da capoeira.

3 comentários:

  1. olá, Isabel Bordalo
    é sempre bom ler-te

    tenho uma coisa destas para a troca aqui a partir do outro hemisfério
    http://joaquimalexandrerodrigues.blogspot.com/
    abrax

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  2. Obrigada Alex.
    Como dizem os angolanos, estamos juntos, quer neste quer nesse hemisfério.
    Um abraço

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  3. Cara Isabel Bordalo,
    Antes de mais parabéns pela crónica.
    Encontro-me neste momento a estudar a fábula na crónica (mestranda da Universidade de Coimbra).
    Gostaria de saber se seria possível trocar consigo algumas considerações propósito desta crónica. Se sim, contacte-me para o e-mail: sara.i.s.oliveira@gmail.com

    Grata pela sua atenção.

    Com os meus melhores cumprimentos,

    Sara O.

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