sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Conjugar mal... (crónica publicada no Novo Jornal)

Centenas de lisboetas concentraram-se, há uma semana, nas várias ruas circundantes ao Saldanha para se despedir do «Senhor do Adeus». Durante mais de duas horas, imitaram o gesto que tornou João Paulo Pereira conhecido.


O homem que, todas a noites, descia ao Saldanha para acenar aos lisboetas foi homenageado, no dia em que morreu, com um gesto idêntico ao que ofereceu, durante mais de uma década. E que se multiplicou, mostrando que a poesia é possível na vida. E que faz todo o sentido.
O homem de cabelo grisalho e com ar aristocrático (não só tinha ar, como nasceu no seio de uma família rica da Lisboa) começou o ritual do adeus depois da morte da mãe.
Trocou a solidão das quatro paredes, pelo espaço aberto do Saldanha. Ali deu e recebeu, numa liturgia da saudação que repetia religiosamente todas as noites. “Numa cidade de estranhos em mundos fechados, este era o seu “milagre”. E é também o seu remédio”, escrevia o DN em 2003.
“Chamam-me o Senhor do Adeus, mas eu sou o Senhor do Olá. Aquele que acena no Saldanha, a partir da meia-noite. Tudo isto é solidão? Essa senhora é uma malvada, que me persegue por entre as paredes vazias de casa. Para lhe escapar, venho para aqui. Acenar é a minha forma de comunicar, de sentir gente”. Assim o apresentava, em Março de 2008, o semanário Expresso. A mão de João Serra não se cansava. O apito dos carros não cessava nas duas horas de acenos. “Só fico triste quando o movimento acaba”.
O movimento do Senhor do Adeus não cessou com a sua morte, aos 79 anos. Os lisboetas saíram à rua para acenar. Jovens, velhos, actores, políticos, cidadãos anónimos. Houve acenos, apitos, sorrisos e lágrimas. De gratidão por o gesto que repetiu até à morte se transformar em poesia numa cidade, tantas vezes, desprovida de alma.
Só me lembro de outro momento igualmente comovente. Quando Portugal parou por Timor.
Ainda emocionado com as imagens do massacre no cemitério de Santa Cruz, em Díli, quando o exército indonésio disparou sobre manifestantes que homenageavam um estudante morto pela repressão, matando 200 pessoas, Portugal viveu com intensidade o referendo sobre a autodeterminação do povo maubere, anulado pelo regime indonésio.
No dia 5 de Setembro de 1999, Portugal vestiu-se de branco. Quando o ponteiro do relógio chegou às 15h00, os portugueses, de norte a sul, foram para a rua. Quem estava dentro dos edifícios saiu; quem circulava de carro parou e apeou-se; quem já estava na rua estacou. O cordão humano por Timor não deixou ninguém de fora. E o país não voltou a viver um momento de solidariedade tão unânime. Nem mesmo perante causas que mergulham na mesma raiz, sendo a liberdade uma das maiores.
Estes dois momentos, que cruzam entre si elevados níveis de emoção, têm réplicas no quotidiano das pessoas, sempre que acontece algo com potencial dramático.
Foi assim há um mês quando 33 mineiros foram libertados das entranhas da terra, após três meses encurralados dentro de uma mina, no Chile; foi assim com a atribuição do Prémio Nobel da Paz ao dissidente chinês Liu Xiaobo; foi assim com a libertação de Aung San Suu Kyi, a dirigente birmanesa que esteve 15 anos presa, com alguns interregnos, nos últimos 21 anos.
O regime militar da Birmânia, rebaptizado de Myanmar, libertou Aung San Suu Kyi no sábado, uma semana depois das eleições, confirmando a farsa da sua última prisão: evitar que disputasse a votação.
As reacções de alegria pela libertação de Suu Kyi vieram de todos os lados, mas uma merece atenção pela perplexidade que causa.
O Presidente de Timor-Leste, José Ramos Horta, também ex-Nobel da Paz, na mesma declaração em que felicita a Birmânia exorta os países ocidentais - os mesmos que tornaram possível a libertação de Timor do jugo indonésio – a reverem a política de sanções à Birmânia e optarem pelo diálogo.
E quando questionado pelos jornalistas sobre o dissidente chinês Liu Xiaobo, Horta confessou a sua “ignorância” por nunca ter ouvido falar do Nobel da Paz de 2010, acrescentando que “não há prémio Nobel”, nem força que “possa influenciar o curso dos acontecimentos na China”.
Para mim, torna-se óbvio que a palavra liberdade ganhou novo significado para Ramos Horta, um ilustre desconhecido quando a Academia Sueca lhe atribuiu o Nobel da Paz. E que hoje conjuga mal o verbo que dá sentido ao substantivo.

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