terça-feira, 2 de novembro de 2010

A morte (no dia dos finados)

Os angolanos convivem frequentemente com a morte.
Ela está sempre presente e a rondar.
É arbitrária.
Leva velhos, jovens, crianças (muitas)
A guerra, primeiro; as doenças, os acidentes e o álcool, agora, cobiçam a vida.
E a morte está sempre por perto.
No início estranhei a facilidade com que os angolanos lidam com a morte.
Fazem o óbito.
E avançam.
Já perdi pessoas muito importantes e sei o que custou reagir e, custa ainda, aceitar.
Hoje percebo que os angolanos não têm menos desprezo por quem parte.
É pragmatismo.
Porque é preciso seguir em frente.



“(…)
Nada mudou para quem delega a glória.
Nada é tão grave que nos impeça os corpos.
Estamos aqui, sentados, sabendo que o conforto
é só cá dentro e a casa é cheia de alegria e festa
e a carne é fresca porque viva e alheia
à carne longe, retalhada e fria.
Somos de fato, em nosso apuro e com o nosso dote,
uma versão apenas indecisa
do nó que nos habita bem no centro.
Rapazes, raparigas,
que cada um empunhe a flor oculta
para inseri-la entre pernadas jovens.

A morte longe enquanto nos arder
à flor da boca
esta atenção pela florações dos outros.”

(Excerto do poema "Memória da guerra em julho" que pode ler na íntegra clicando no "Ler mais")
Memória da guerra em julho

1

É preciso que aconteça numa manhã sem sol e sem
recurso para o cansaço que o corpo traz da noite. É preciso
também valorizar o medo. Dizer assim, talvez:
- a guerra continua, dormi a noite toda
e a guerra continua.
Uma luz como a de outubro surgirá em julho.
Atingirá as formas como se as formas a desconhecessem,
como se até aí fossem rocha apenas sobre as areias que há
[no mar profundo
e não soubessem nada do seu próprio corpo
e a luz as dissolvesse numa excessiva sobre-exposição.
Vem declarar, num instante, a anulação completa das
[idades.
A progressão da luz e a regressão da forma.
A dissolvência, em suma.

Os contornos estão perdidos para sempre. Agora é a memória,
memória, a madrugada, a opacidade imaculada do silêncio.

Esta era a profecia. O retrato fiel do fim do mundo.

2

É já apenas só uma memória.
Falo da luz que irradiava dos cadáveres
e das águas fermentadas que os continham.
Havia um frasco, enorme.
Crescera desmedido para albergar compassos de uma guerra longe:
os ecos todos dos obuses todos
os glaciares do medo nas arenas do norte.

À volta uma manhã que era já quente, a luz rente de
outubro, a iminência da dissolução.
E havia o frasco, um frasco enorme, prismático e aberto,
retendo o amarelo de uma água velha,
matéria a mais propícia à gestação dos limos e das algas.
À tona alguns cadáveres, o ventre exposto, inchado e branco,
alguns também retidos na verdura
e os olhos sobretudo, provocação soberba da miséria.
Quando isto aconteceu eu era muito novo
e sem recursos para iludir surpresas.
Mais tarde atravessei cidades mortas
Não as temi.

Morte ou memória? Como entendê-lo agora?

3

Os pequenos dragões puseram a gravata, ajustaram ao
corpo a couraça do orgulho, consultaram num instante a
cartilha da paz, e vieram para a rua comandar a guerra.
A ordem de batalha está completa: o cancro explodirá
Pela madrugada. Nem as franjas da noite estarão
bastante longe. A flor do eco, que abre nos peitos um
lugar para a sede, oscilará suspensa no silêncio,
assegurando o gangrenar da aurora.

Os pequenos dragões esbracejam na penumbra. Estendem
o braço para afagar o ferro e aferem, um a um, os
potentes instrumentos da confiança. Os pequenos dragões
estão sobretudo ansiosos. Exibem, varonis, a ereção da
voz e arremetem-na de encontro à multidão para
fecundar-lhe o embrião da raiva.

A aranha é instalada nos baldios da fé. Assenta o peso
sobre a carne incauta e crava as garras, para se afirmar,
na oferta abdominal das hostes seduzidas. O ferro
arranca vivas de prazer. Entre dois crânios grandes um
pequeno, de forma a que não haja qualquer falha e se
edifique um piso só de crânios. O aparelho
vive de equilíbrios.
Os pequenos dragões não podem mais. É tempo já de
acometer a noite. As condições propícias estão criadas: há
já um cio para umedecer o medo. Sejamos fêmeas para a
ereção da armada. Do som haverá luz e das brechas da
carne escorrerão manhãs.
O sangue, hoje, é dos outros.

4

Acordas ansioso por saber das grinaldas que o sangue
abriu na noite. Enfrentas a manhã nua e devassa
como a parede branca a que se rasga a forma
de um cartaz antigo. Caíram os tapumes da confiança
e eis presente, como nunca adversa, a geografia
cada vez mais tensa.
Vês a língua de areias servida de outra luz.
A memória sumiu-se, cristalizou nos ecos.
A gestação do medo arruinou as horas.

Ensaias o andar antes sabido. Apenas expões a pele
sem que o contorno do teu velho corpo
revele indícios do que lhe vai por dentro. Reinventas no
mundo a implantação do vulto, lavado agora das razões
seguras. Estar vivo e acometer a claridade
implica a vocação de afeiçoar o corpo à praça imposta.
Há uma maneira apenas de enfrentar o frio.
É transportar, por dentro, o mesmo frio. Não fere, a
decisão, muito para além das decisões alheias.

5

Nada mudou para quem delega a glória.
Nada é tão grave que nos impeça os corpos.
Estamos aqui, sentados, sabendo que o conforto
é só cá dentro e a casa é cheia de alegria e festa
e a carne é fresca porque viva e alheia
à carne longe, retalhada e fria.
Somos de fato, em nosso apuro e com o nosso dote,
uma versão apenas indecisa
do nó que nos habita bem no centro.
Rapazes, raparigas,
que cada um empunhe a flor oculta
para inseri-la entre pernadas jovens.

A morte longe enquanto nos arder
à flor da boca
esta atenção pela florações dos outros.

(Memória de tanta guerra)

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