O Brasil foi o primeiro país a reconhecer Angola, no dia 11 de Novembro de 1975. Na passagem dos 35 anos sobre a Proclamação da República de Angola, é bom recordar os momentos que antecederam uma das decisões mais difíceis da diplomacia brasileira. E olhar para o exemplo de um diplomata, Ovidio de Andrade Melo, que se manteve fiel a princípios e que, por causa, disso sacrificou a carreira. Um testemunho, na primeira pessoa, publicado numa edição especial do Novo Jornal, comemorativa do 11 de Novembro.
Brasil foi o primeiro país a reconhecer Angola
A decisão que custou a carreira ao diplomata
Textos: Isabel Costa Bordalo
O Brasil foi o primeiro país, num conjunto de pouco mais de 30, a reconhecer Angola como Nação independente. Se em Brasília, o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) se enredava num jogo de evasivas e indecisões, em Luanda, o representante especial do Brasil perante o governo de Transição, que precedeu a independência de Angola, a 11 de Novembro, e embaixador especial do Brasil para as festividades da independência, Ovidio de Andrade Melo, mantinha-se firme na pressão para que o poder que emergia, o MPLA, fosse reconhecido pelos brasileiros e, com ele, o reconhecimento do novo país.
A posição que assumiu sacrificou a carreira do embaixador e desencadeou um sem número de suspeições, alimentadas pela imprensa brasileira. Ovidio Melo, que tem hoje 84 anos de idade, viu-se remetido para postos de inferior importância para a política externa brasileira e viu serem-lhe adiadas as promoções na carreira.
“Não lastimo então o truncamento de minha carreira. Valeu a pena, para algo tão importante. Afinal, não entrei no Itamaraty para fazer carreira. Entrei no Itamaraty para fazer política externa. E foi o que fiz, para que hoje possa sentir-me razoavelmente sereno e bastante realizado como diplomata aposentado”, afirmou Ovidio de Andrade Melo, num impressionante testemunho escrito, a que deu o nome de “Reconhecimento de Angola pelo Brasil em 1975”.
Reconhecimento que, segundo o diplomata, nas “condições que o Brasil viveu durante o regime autoritário” e “feito sob duras dificuldades, sobressai como o gesto mais dessassombrado da política externa brasileira em todos os tempos”.
E que ainda hoje tem repercussões nas “relações do Brasil com Angola”, que “são de mútuo respeito e crescente confiança recíproca, como seria esperável entre países tão irmanados pela história, pela raça e pela cultura” e que, segundo Ovidio Melo, poderão “constituir-se num modelar exemplo para as relações que a América Latina terá com o vizinho continente africano”.
O Governo de Lula da Silva reconheceu o papel “lúcido” exercido pelo diplomata e inaugurou, a 3 de Novembro, em Luanda, no âmbito de uma visita a África, o Centro de Estudos Embaixador Ovidio de Andrade Melo que tem por missão apoiar e promover o estudo das relações entre o Brasil e o continente africano.
O texto “Reconhecimento de Angola pelo Brasil em 1975” não é, segundo Ovidio Melo, “um estudo acadêmico que se aprofunde em digressões políticas, que se fundamente em dados econômicos, que cite precedentes históricos e diplomáticos, que se escore em vasta bibliografia. É apenas o relato de um diplomata brasileiro que, no exercício de funções, durante um ano viveu em Luanda circunstâncias dramáticas, prenhes de consequências políticas, capazes de definir o futuro das relações do Brasil não só com Angola, mas com toda a África Negra”.
A necessidade de deixar o seu testemunho visava ainda repor a verdade porque “o reconhecimento de Angola, em boa hora feito e com dificuldades mantido pelo governo brasileiro, continuava a sofrer persistentes pressões internacionais e a ser motivo de acalorada discussão na imprensa brasileira, com reflexos muito graves até na composição” do governo brasileiro.
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Brasil com duplicidade de posições
A ligação de Ovidio de Andrade Melo à independência de Angola começa em 1965 ao ser nomeado Chefe da Divisão das Nações Unidas (ONU), após regressar de um posto no exterior.
As mudanças ministeriais no governo Castello Branco, operadas após a sua nomeação, colocaram a política externa brasileira sob a batuta de Juracy Magalhães “que se notabilizou por uma frase, que pretendia ser a súmula de sua política: o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.
Na ONU discutia-se a aplicação de sanções a Portugal por causa da sua política face às colónias. Os EUA abstiveram-se. Mas o Brasil “tendia a votar contra sanções”, contrariando a indicação de Ovidio Melo que propunha que o seu país seguisse o voto dos norte-americanos.
A sugestão do Chefe da Divisão das Nações Unidas “não ultrapassou a secretaria, à época chefiada por Pio Correia”, e de lá “foi para o arquivo, senão para a cesta do lixo”.
Começou aí a posição dúbia do Itamaraty sobre as ex-colónias portuguesas e Angola, em particular.
Quanto rebentou a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1975, Ovidio de Andrade estava em Londres, o seu posto diplomático. Na Nato analisava-se a posição de Portugal em relação à concessão das independências, pós processo revolucionário. “Os Estados Unidos e as potências europeias acreditavam que da Guiné Bissau e de Moçambique, Portugal poderia retirar-se a qualquer momento, sem problemas. Mas de Angola, colônia rica, onde três movimentos guerrilheiros se digladiavam pelo poder, Portugal, mesmo que quisesse, não se poderia desvencilhar, segundo os cálculos da OTAN, em menor prazo do que, aproximadamente, cinco anos”.
“A FNLA, de Holden Roberto, a UNITA de (Jonas) Savimbi, oriunda de uma cisão da FNLA, e depois colaboradora das tropas portugueses nos combates contra o MPLA; e, finalmente, o MPLA de Agostinho Neto, apoiado por países do mundo socialista”, perfilavam-se como os titulares do poder no novo país. “Com este alinhamento de forças podia-se, então, presumir, na Ilha do Sal”, Cabo Verde (onde, segundo Ovidio de Melo, o Presidente Nixon teve um encontro com Spínola e Mobutu, que apoiava a FNLA) e em Alvor, “que nas eleições previstas para a independência de Angola, ou em lutas que sobreviessem entre os movimentos, FNLA e UNITA acabariam unidas. E o Ocidente teria 2/3 de chances de predominar no novo país, o que permitia prefixar a data da independência para 11 de Novembro de 75”.
“O que não se levou em conta, nem talvez fosse possível calcular, na Ilha do Sal, ou em Alvor – recorda o diplomata - era o apoio popular que os movimentos guerrilheiros verdadeiramente tivessem ou a experiência de luta que, na prática, houvessem adquirido em 14 anos de guerra anticolonial”. O MPLA acabaria por assumir o controlo de Luanda e, pela voz de Agostinho Neto, proclamar a independência a 11 de Novembro de 1975, contra as previsões do Ocidente, politicamente alinhado à direita com os EUA.
O embrião da diplomacia brasileira em Angola
Um ano antes da proclamação da independência, o Brasil tem a ideia “bastante inteligente e original de criar Representações Especiais com o status de embaixadas antecipadas, em Moçambique e Angola” e com essa presença “antecipada e neutra” o país dava “maior credibilidade aos Acordos de Alvor”. Ovidio Melo é convidado a tomar parte dessa aventura de “resultados muito incertos e imprevisíveis”, acabando por viver, nesse ano de 1975, a experiência “mais valiosa” de tudo o que aprendeu em 42 anos de carreira, como realça.
O diplomata aceita a missão, depois de questionar sobre o facto de o ministro das Relações Exteriores do Brasil ter primeiro ido entender-se com Mário Soares, na altura responsável pela política externa portuguesa, antes de tratar com os próprios líderes dos movimentos independentistas.
“(Ítalo) Zappa foi categórico nas respostas a minhas primeiras dúvidas: O Brasil não tinha intenção alguma de moldar Angola independente a desígnios da antiga metrópole. Nem tinha qualquer propósito de favorecer a um ou outro dos movimentos negros que em Angola disputariam o poder. Seria isento, absolutamente isento, equânime e neutro entre todos eles e estaria pronto a reconhecer aquele que, sobrevinda a Independência, tivesse alcançado o poder”, recorda.
O que o Brasil pretendia com a criação destes embriões de embaixadas era “ir planejando desde logo um relacionamento intenso com Angola e Moçambique. E para tal finalidade seria imprescindível buscar como que o denominador comum entre as aspirações que os três movimentos angolanos e a Frelimo em Moçambique pudessem ter, desde o início, para as relações futuras com o Brasil”.
Foi isso que Ovidio Melo cumpriu escrupulosamente. Deixou provisoriamente Londres, o seu posto diplomático para onde tencionava voltar, encontrou-se com os vários movimentos independentistas (dois em Moçambique, três em Angola), visitou o alto-comissário de Portugal, Silva Cardoso, e os três primeiros-ministros, um de cada movimento (Lopo do Nascimento pelo MPLA, José N’Dele da UNITA e Pinnock Eduardo, da FNLA), que constituíam o governo de transição para a independência, recém-instalado segundo os acordos de Alvor, e abriu a representação diplomática, mantendo-se firme no compromisso de isenção, mesmo perante as indefinições do Itamaraty, quando o MPLA tomou o controlo de Luanda e perfilou-se como o movimento proclamador da independência.
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O jornalista que colaborava com a FNLA
Ovidio Melo recorda um episódio que foi determinante na campanha de intoxicação da qual viria a ser alvo no Brasil, antes e depois do reconhecimento de Angola como um novo país.
“Mal havia desfeito as malas, recebi um telefonema. Era do próprio hotel, um outro brasileiro recém-chegado, o jornalista Fernando Câmara Cascudo, queria visitar-me. Encontramo-nos logo. Câmara Cascudo era de O Globo. Vinha para Luanda prestar assistência à campanha eleitoral de Holden Roberto, para orientar e modernizar o jornal da FNLA, que era a Província de Angola. (...) Mas não era isso que Câmara Cascudo vinha modernizar. Estava interessado em sondar-me. Não podia acreditar de forma alguma que o Brasil pudesse ter vindo para Angola para ser isento, equânime, neutro. Insistia em que, no fundo, o Brasil deveria ter preferências, pois o MPLA era comunista… e a UNITA era um movimento insignificante, criado pelos próprios portugueses, para combater o MPLA. Por eliminação, o jornalista concluía, por conta própria, e externava a opinião, o Brasil só poderia estar apoiando Holden Roberto e o FNLA, ainda que eu não quisesse declarar”.
Para “desfazer quaisquer ilusões que Câmara Cascudo pudesse manter” a respeito da sua missão, Ovidio Melo clarificou: “Disse-lhe que as declarações feitas pelo Itamaraty à imprensa, sobre a isenção e a equanimidade do Brasil, perante os três movimentos angolanos, eram absolutamente sérias. E que eu e meus colaboradores as levaríamos ao pé da letra, durante todo o curso de minha missão. Quanto à minha convicção pessoal, disse-lhe que todos nós, brasileiros, éramos, antes de tudo, mal informados sobre a África, sobre as forças que disputariam o poder em Angola. Ademais, não vínhamos a Luanda para ganhar eleições, nem para vencer lutas civis, vínhamos para começar a ter relações de todo corretas com as colônias portuguesas que se independizavam, para ter boas relações com a África em geral, a longo prazo. Para isto, não podíamos começar a apostar num ou noutro partido; era imprescindível equanimidade, não envolvimento em disputas eleitorais ou lutas que sobreviessem”.
Por esta mesma razão, preocupava ao diplomata o papel que ele, jornalista brasileiro, passaria a ter ao serviço da FNLA, recorda. “Deveria limitar-se a dar a seu empregador orientação técnica, especializada, mas não conviria jamais que se envolvesse em atividades partidárias. Menos ainda seria cabível que sua atuação, como brasileiro, pudesse ser a qualquer tempo confundida com a dos funcionários que ali estavam em missão oficial, pois isto poria a Representação Especial em confronto com os outros partidos angolanos e frustraria a política brasileira”.
Ovidio Melo tinha razão. Já depois da independência, o agente da CIA Robert Stockwell, num livro que publicou nos EUA, com grande repercussão internacional, questionou o facto do Brasil ter ao mesmo tempo uma Representação Especial em Luanda, com relações amistosas com o MPLA, e permitir que cidadãos seus aparecessem como conselheiros de Holden Roberto, em Kinshasa.
“As relações oficiais que o Brasil mantinha com o MPLA em Luanda incomodavam a CIA. E por isto a agência fez pressões sobre o governo brasileiro, para de lá tirar seu representante”, revelou ainda Stockwell.
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O difícil jogo da diplomacia
Enquanto em Angola se definiam posições, antes da proclamação da independência, a imprensa internacional, brasileira incluída, dava “destaque diário aos conflitos havidos em Luanda, até com certo exagero, pois havia interesse em comover o mundo com os acontecimentos de Angola e jogar todas as culpas sobre o MPLA”.
Na mesma época, o Líbano entrava em guerra civil, mas esse conflito pouco ou nada dizia ao Brasil, que concentrava atenções em Angola.
Para além da concessão de vistos permanentes – cinco mil por mês, a maior de uma missão diplomática brasileira - ainda cabia à equipa de Ovidio Melo a tarefa de montar uma embaixada, numa altura em que os bens escasseavam em Luanda, enquanto outros corpos consulares se esvaziavam.
Os diplomatas brasileiros estavam instalados no Hotel Trópico, juntamente com representantes de outros países. Mas também o hotel ia ficando “fantasmagoricamente vazio na semana que precedeu a independência, porque todos os quartos foram requisitados pelo governo, para hospedar as 70 delegações esperadas pelo MPLA para as festas de 11 de Novembro”.
Apesar de os seus colaboradores se mudarem para o prédio do consulado brasileiro, entretanto erguido, Ovidio manteve-se no Trópico. “Não podia deixar o hotel, quando as delegações estavam por chegar, pois isto seria interpretado imediatamente como um sinal de que eu mesmo não acreditava na possibilidade de que o Brasil fosse reconhecer o novo governo de Angola. Ivony (a mulher) e eu então ficamos por uma semana absolutamente sozinhos naquele prédio de trezentos quartos, que de todo se esvaziou, à espera dos representantes de países que iriam reconhecer Angola”, recorda.
O cônsul geral alemão ocidental procurou o diplomata brasileiro. Tinha um problema político-protocolar a expor. “Pressentia que a República Federal Alemã não estaria entre os primeiros países a reconhecer. E presumia que, não reconhecendo o novo governo no dia 11 de Novembro, não seria convidado para as festas da independência. Pretendia então sair de Luanda antes. Indagou-me sobre o que eu iria fazer. Respondi-lhe que ainda aguardava instruções do Itamaraty. De fato, o Itamaraty vinha demorando uma decisão a respeito e queria saber de antemão quantos países reconheceriam”.
O MPLA esperava um número de 70 reconhecimentos imediatos, o que “não seria exagerado, se muitos dos países africanos logo se decidissem a reconhecer”, mas isso “dependia muito da orientação da OUA com respeito a Angola. E a OUA naquele ano estava presidida e desorientada por Idi Amim, o imprevisível ditador de Uganda”. Os Estados Unidos, o Reino Unido, e outros países europeus, vinham fazendo pressões sobre os países africanos para que retivessem o reconhecimento, mesmo diante da revulsão que a invasão sul-africana estava causando na África inteira”.
Era possível, portanto, que “o número de reconhecimentos de primeira hora fosse menor do que o MPLA esperava”.
Soluções jeitosas
Ovidio Melo mantinha-se firme na sua posição: “Parecia-me essencial reconhecer. Se desde Março quiséramos estar presentes; se havíamos antecipado as relações com os três movimentos angolanos, quando criamos a Representação Especial; se durante todo aquele ano havíamos declarado isenção, equanimidade e prometido ter relações com qualquer dos partidos que ao fim predominasse, como poderíamos agora recuar, num momento em que o MPLA já era vencedor e se via ameaçado apenas por uma invasão estrangeira, e logo uma invasão da África do Sul, que revoltava a África inteira? Coloquei então minha opinião muito claramente para o Itamaraty: não havia como, nem deveríamos tergiversar. Ou reconhecíamos na primeira hora, ou me davam instruções para retirar-me imediatamente de Angola com a Representação Especial e todos os funcionários brasileiros. Não haveria a possibilidade de adotar meios termos, de usar fórmulas e soluções intermédias e jeitosas no dilema em que estávamos”.
No começo da semana que precedeu a independência, o cônsul geral americano também foi embora. “Finalmente, dois dias antes das festas programadas, recebi a decisão do Itamaraty, para ser comunicada ao governo local”, recorda o diplomata brasileiro.
O Brasil reconheceria o governo de Luanda por declaração a ser dada à imprensa em Brasília, às oito horas do dia 10 de Novembro, dado que, pela diferença de fusos horários, naquele momento seria meia noite em Angola, exatamente quando os últimos representantes coloniais de Portugal estariam partindo para sempre e o MPLA estaria assumindo o poder. Na mesma data, informava-me o Itamaraty, seria assinado o decreto que criava a Embaixada do Brasil em Luanda”.
O diplomata transmitiu a comunicação ao primeiro-ministro do MPLA, Lopo do
Nascimento, e na mesma tarde recebeu os convites para a festa da independência, que começavam a ser distribuídos. “A notícia causou grande impacto e alegria no MPLA”, recorda.
A decisão levou Marcelino dos Santos, que chefiava a delegação moçambicana, a primeira a chegar para a festa de independência, a informar que “dali por diante as relações do Brasil com Moçambique seriam de amizade”.
Estado de suspensão
No Brasil, tardava a ser anunciado o reconhecimento do novo país, e quando se confirmou a presença cubana em Angola, denunciada por Henry Kissinger, os sectores mais conservadores da opinião pública agitaram-se. “Não podiam aceitar o alinhamento ocasional em que nossa política para com Angola nos colocara, ao lado dos países socialistas e de Cuba, dessintonizados dos Estados Unidos. Nem faltavam às criticas que logo surgiram nos principais jornais do país, em editoriais e artigos variados, uma bem orquestrada ajuda estrangeira... Zappa, no exercício de suas funções e com uma visão lúcida da importância da imprensa nas relações internacionais, procurava explicar ao público brasileiro, através de jornalistas que diariamente o procuravam, o sentido da posição de equanimidade que o Brasil havia adotado, a necessidade de manter firmemente aquela política se quiséssemos ter relações corretas e frutuosas, a longo prazo, com o vizinho continente. Mas no próprio Itamaraty encontrava críticas ao diálogo que procurava manter com jornalistas, para informar o público brasileiro. Acusavam-no de estar buscando notoriedade, de estar cuidando de sua projeção pessoal”.
O Itamaraty, assim, “tendia a fechar-se em copas, a calar-se, sem contraditar a campanha que forças nacionais e estrangeiras moviam contra o reconhecimento de Angola. E as Embaixadas dos países socialistas sediados em Brasília não podiam deixar de observar a timidez, a hesitação com que nossa Chancelaria defrontava as críticas que sofria, o que parecia indicar que a posição brasileira ainda poderia ser revista”.
Enquanto choviam pedidos na Embaixada do Brasil em Luanda – a capital necessitava de quase tudo – “nem os negócios e pedidos que tinham assim nítido caráter humanitário recebiam resposta do Itamaraty. Tudo ficava paralisado. O Itamaraty parecia cataléptico”.
“Criava-se então um hiato, um estado de suspensão sumamente perigoso para as relações apenas iniciadas. O Itamaraty julgava poder esperar, deixar passar o tempo, para ver se a vitória final do MPLA contra seus inimigos, se a expulsão dos invasores de Angola, se os novos reconhecimentos que Angola ia recebendo, da Comunidade Européia, de países africanos conservadores, acabariam por fazer cessar a campanha da imprensa contra o reconhecimento brasileiro”.
Finalmente o decreto
“Por conversas que tive com um recém-designado diplomata angolano, previ e adiantei ao Itamaraty que o Brasil também seria convidado a assinar em futuro próximo uma Declaração Conjunta, nos moldes daqueles sumários documentos diplomáticos que os jornais locais iam publicando a cada dia. E então, para minha total surpresa, no Itamaraty se desencadeou uma tempestade em copo d.água. Silveira me passou um longo e desaforado telegrama particular. Alegava que o Brasil não usava fazer declarações conjuntas com aquela finalidade (o que era inexato, pois sempre as fez com todos os países socialistas); que ele, Silveira, estava sob fortes pressões no Brasil pela atitude que tomara no reconhecimento de Angola; que o Decreto brasileiro abrindo a Embaixada em Luanda ainda não fora sequer levado à assinatura do presidente (Ernesto) Geisel (o que para mim era motivo de verdadeiro pasmo, dada a comunicação anterior, de que o Decreto seria assinado no mesmo dia do reconhecimento); que eu, com essa intenção de Declaração Conjunta, estava atrapalhando as relações com Angola; que eu deveria imobilizar-me em Angola, não ver ninguém, nem mesmo se chamado pelo ministro das Relações Exteriores deveria comparecer, o que era de todo incrível pois o novo ministro das Relações Exteriores havia assumido dias antes, era José Eduardo dos Santos (político de grande prestígio que depois veio a ser o presidente de Angola com a morte de Agostinho Neto) e naquela época estava convidando a entrevistas, rotineiramente, todos os representantes estrangeiros em Luanda, para conhecê-los, e também para sugerir a publicação das tais Declarações Conjuntas”.
Ovidio Melo respondeu a Silveira na mesma noite em que o seu telegrama particular chegou e no mesmo tom. “Comecei por mostrar-lhe minha discordância: eu, que aguentara um ano de guerra em Luanda, para ter relações com Angola, não poderia de forma alguma estar agora atrapalhando as mesmas relações”.
Dias depois, o diplomata recebe instruções para deixar Luanda. Viria substitui-lo Affonso Celso de Ouro Preto, primeiro-secretário, colaborador de Zappa no Departamento da África, mas a nomeação do novo diplomata é recusada em Luanda. E mal Ovidio chega a Lisboa, onde faz escala de viagem para o Brasil, é informado para regressar a Angola para assumir de novo a missão e esclarecer a razão da recusa.
“Affonso Celso tinha um irmão bem mais velho, Carlos Silvestre, que fora embaixador em Portugal, ao tempo de Salazar. Este irmão, no meio da década de 1960, havia visitado oficialmente Angola e fizera um destemperado discurso pró-Portugal, de cunho nitidamente colonialista. O MPLA confundira os dois irmãos”.
Na passagem de ano, o Presidente do Brasil finalmente assina o decreto criando a Embaixada em Luanda. “Assim, também o reconhecimento das ex-colônias portuguesas, inclusive Angola, foi mencionado num parágrafo do discurso de fim de ano feito pelo presidente Geisel”.
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