segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Lucidez (crónica publicada no Novo Jornal*)

Um denunciava “a manipulação das massas pelos media” e atacou as instalações de dois órgãos de informação, em Paris, baleando gravemente um fotógrafo. O outro proclamava a supremacia branca, assassinou a sangue frio 22 pessoas e deixou uma 23ª paralítica.
O primeiro acabou por ser detido, num estado de semiconsciência gerado pela ingestão de fármacos. O segundo foi executado, com uma injecção letal, dando cumprimento a uma pena capital.
A separar a loucura destes dois homens há um imenso oceano, vários anos de diferença, duas culturas… e a uni-los existe um ódio desmedido que não tem justificação racional, nem divina, mesmo que um deles tenha invocado o nome de “Deus” para justificar o início de uma nova guerra racial na América.
Na hora da detenção, Abdelhakim Dekhar refugiou-se no silêncio, permitido pelo seu estado de semi-inconsciência, e nada disse sobre as suas motivações.
Numa entrevista esta semana, Joseph Paul Franklin, que fez parte do Ku Klux Klan e foi membro do partido nazi dos EUA, declarou que as suas ideias tinham sido “ilógicas” e que na prisão percebeu que os negros “são pessoas como nós”.
A caça a Adbelhakim, de origem argelina, intensificou-se na segunda-feira, depois de ter ferido um fotógrafo do «Libération», onde entrara empunhando uma arma, e de ter disparado contra o banco Societé Generale. As imagens do homem, de 48 anos, que na sexta-feira entrou na estação de televisão francesa BFMTV, percorreram mundo; circularam nos media e nas redes sociais. Na segunda-feira, depois dos ataques obrigou um automobilista a transportá-lo para os campos Elísios, onde terá apanhado o metro. Antes de sair do carro, disse que saíra da prisão e “estava preparado para tudo”.
Com a detenção de Abdelhakim começou a ser desfiado um novelo de intriga hollywoodesca. Traçou-se a tendência do homem para a efabulação, marca que ficou gravada num perfil feito em 1998, quando foi condenado.
Em 1994, envolveu-se com um jovem casal de anarquistas, num plano para roubar armas à polícia. O casal acabou detido numa perseguição fatal, durante a qual morreram cinco pessoas, três delas polícias. E Dekhar, que lhes fornecia armas e dizia fazer parte das forças de segurança argelinas, tendo a missão de se infiltrar na extrema-esquerda parisiense, foi preso por cumplicidade.
A advogada que o defendeu recorda-se da dificuldade em lidar com a personalidade emaranhada de Abdelhakim. “Nunca soube bem quem ele era. Dizia que era agente dos serviços secretos franceses ou argelinos, era muito secreto, não se confiava”, testemunha.
Depois da investida desta semana, a polícia francesa encontrou cartas em que Dekhar denunciava a “manipulação das massas pelos media”, fazia referência a um “complot fascista”, evocava as guerras na Líbia e na Síria e contestava a forma como são geridos os subúrbios franceses.
Joseph Paul Franklin começou a matar em 1977, um ano antes de atirar para uma cadeira de rodas Larry Flynt, o criador da revista erótica «Hustler», que pediu para o estado do Missouri não executar a pena capital.
O magnata do império «Hustler», que foi baleado à porta do tribunal por ter publicado na sua revista uma fotografia de uma cena de sexo entre pessoas de raças diferentes, não acredita na pena de morte. Alega que um Estado que condena o assassinato não pode matar.
“Em todos estes anos após o ataque, nunca estive cara a cara com Franklin. Adorava ter uma hora num quarto com ele e um par de alicates, para lhe provocar o mesmo dano que ele me provocou a mim. Mas não quero matar. Nem quero vê-lo morrer”, escreveu no seu pedido de clemência.
O pedido do irreverente Larry Flint, que encara a pena capital como acto de vingança e não de justiça, foi negado. Franklin foi executado. Tinha 63 anos e a noção perfeita do mal que fez.
O que fica como pergunta é: qual o húmus que faz germinar tanto ódio pelo outro? Por aquele que se desconhece, aquele que é diferente, aquele que desencadeia um estado de loucura que faz esquecer que todos são seres humanos iguais. Iguais nos direitos, nos deveres e nos sonhos.
As ciências ligadas à mente humana, com certeza, explicam muita coisa, mas não explicam tudo. É preciso encontrar na sociedade as razões que ficam por identificar.

*Publicada no dia 22 de Novembro de 2013


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